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Debater estupro e gênero na universidade é "vacina", diz antropóloga da USP

Marcia Thereza Couto - Arquivo pessoal
Marcia Thereza Couto Imagem: Arquivo pessoal

Janaina Garcia

Colaboração para o UOL, em São Paulo

09/06/2016 06h00Atualizada em 09/06/2016 11h38

Deixar a temática de gênero de fora dos currículos do ensino superior é uma espécie de terreno fértil para um mercado de trabalho com profissionais que perpetuem desigualdades e estereótipos.

A opinião é da antropóloga Marcia Thereza Couto, 45, pernambucana que é professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).

Juntamente com outras pesquisadoras e professoras de diferentes áreas de atuação, Marcia está desde abril do ano passado à frente da Rede Não Cala USP, que foi criada para dar suporte às vítimas de violência sexual.

À época da formação do grupo, o foco eram as alunas de medicina que levaram a público casos de estupro cometidos por seus próprios colegas de curso em festas de estudantes.

O trabalho cresceu, e, desde então, a equipe acompanha 15 mulheres do ambiente acadêmico da USP que sofreram algum tipo de violência sexual ou de gênero – não só alunas, como professoras e funcionárias. 

A antropóloga conversou com a reportagem do UOL sobre como trabalhar a cultura do estupro no ambiente universitário – o pano de fundo foi o estupro coletivo de uma jovem de 16 anos no Rio de Janeiro e a repercussão social que o crime ganhou.

Para Marcia, que atuou em movimentos feministas de décadas passadas e foi à avenida Paulista no último dia 1º em apoio à jovem carioca, “algo está algo novo acontecendo pelas mãos das meninas jovens”. 

 Leia, a seguir, a entrevista com a antropóloga.

UOL - De que maneira a universidade pode acabar com a cultura do estupro?

Marcia Thereza Couto - A escola tem não só o dever, mas o papel de inserir gênero no seu conteúdo curricular – desde o ensino fundamental e infantil até o ensino universitário. Na Faculdade de Medicina, costumamos dizer que cursos como medicina, direito e engenharia, por exemplo, não são amigáveis à perspectiva de gênero, não são facilitadores da penetração desse conteúdo no currículo escolar.

E no caso da formação médica, isso acarreta uma visão pouco crítica dos alunos e das alunas sobre as desigualdades de gênero no mercado de trabalho para eles próprios. Acarreta um impacto negativo sobre estereótipos de gênero que esses alunos e profissionais constroem diante dos seus futuros pacientes e usuários da saúde, ao criar estereótipos sobre a mulher, o gay, a lésbica. E faz com que eles não pensem também em como o seu próprio currículo o faz perpetuar esses estereótipos na sociedade. 

Não tem como haver uma perspectiva de uma escola sem gênero, sem conteúdo de gênero e de sexualidade, pois gênero nos constitui como sujeitos no mundo.

UOL - Recentemente, alunos e alunas de arquitetura do Mackenzie denunciaram um professor que teria feito piada com vítimas de estupro do hoje ex-médico Roger Abdelmassih. A partir disso, o que é mais difícil: inserir questões de gênero nos currículos ou na própria formação do professor?

Marcia - É muito difícil em ambas as situações. Vivemos um sistema educacional em que, embora as mulheres tenham alcançado um nível de inserção muito grande últimos anos, grande parte dos professores universitários, sobretudo nas escolas mais tradicionais – como direito, medicina e engenharia --, são homens. 

Uma segunda questão é que, mesmo existindo mulheres no quadro de professores dos diferentes cursos da universidade, alguns com mais, outros com menos, a academia sempre foi muito refratária à perspectiva de gênero, se compararmos a outras perspectivas. Gênero só entra como debate, saindo do movimento social, a partir dos anos 80 nos Estados Unidos – é muito recorrente que qualquer tópico ou tema de gênero que a gente queira inserir nos currículos seja visto como algo menor na formação dos alunos. Porque grande parte desses professores são homens e estão nos cargos de mais poder como chefia de departamento e órgãos colegiados; além do que, a própria perspectiva de gênero é muito recente.

UOL - No que o trabalho da Rede Não Cala consiste e o que ele tem observado sobre a violência contra a mulher dentro da universidade?

Marcia - A Rede junta professoras e pesquisadoras da USP e surgiu ano passado, em abril, diante da repercussão dos diversos casos de violência contra a mulher, sobretudo a sexual, na universidade. Muitas de nós, professoras em diferentes departamentos, éramos procuradas por alunas e começamos a debater que essas alunas passam por nós – e nós vivemos a universidade ao longo décadas, já que somos funcionárias de carreira.

Nossa rede é só de professoras e pesquisadoras, mas temos tido uma relação bastante estreita também com coletivos feministas e de gênero de dentro da universidade que têm campanhas, por exemplo, contra o machismo e a exploração sexual. Nossa perspectiva é inovadora no sentido de cobrar da universidade uma ação muito mais apropriada sobre esse problema que a instituição enfrenta há décadas, que são a cultura do machismo e a banalização da violência e do assédio enfrentadas pelas mulheres.

UOL - Há relatos segundo os quais alunas de medicina que denunciaram casos de estupro ano passado estariam sendo hostilizadas...

Marcia - Lidamos com isso, é fato – mas elas não são hostilizadas só pelos colegas, como por funcionários e professores.

Porque o machismo está tão entranhado que as meninas que denunciaram e que buscam reparação ou punição muitas vezes são vistas como as que levam para o meio externo uma imagem não tão boa da universidade. Pelo contrário!

Nós as apoiamos e buscamos as reparações e punições no sentido de mostrar que machismo e violência ocorrem na universidade como em toda a sociedade, da qual a instituição não está apartada. (...) Existem muitas meninas que vivenciaram violência sexual não só na USP, mas em inúmeras universidades, que têm histórico de abandono de seus cursos de formação. Não podemos permitir isso.

UOL - Desde 2015, entre as vítimas que a Rede acompanha, qual a principal sequela emocional que fica?

Marcia - É ter que conviver com o agressor dentro sala de aula, ao lado, no mesmo ambiente, e ser, muitas vezes, desacreditada pelos outros colegas sobre se, de fato, ela tivesse sido a culpada. 

UOL - A senhora esteve na manifestação da Paulista no último dia 1º contra a cultura do estupro. O que sentiu ao ver a reação de milhares de mulheres?

Marcia - Foi um sentimento de que as mulheres não querem se calar e estão se unindo. Vi ali tantas mulheres, algumas conhecidas e muitas desconhecidas, mães com crianças, alunas, secundaristas, colegas professoras, mulheres saindo de seus turnos de trabalho...

E todas juntas por um ideal de reparação histórica contra a humilhação e a violência que elas vêm sofrendo. E além do mais, o caso exemplar que as levou às ruas é que não há nenhuma desculpa para não reconhecer o estupro e não dar visibilidade ao que a vítima está falando. Não há desculpa: foi estupro, e isso é crime.

E nossa sociedade precisa se incomodar com esse crime, em vez de banalizá-lo, porque esse tipo de atitude só reforça uma sociedade machista que subjuga as mulheres e credita a elas um lugar de satisfação sexual dos homens. 

Os movimentos feministas têm ganhado as ruas porque perceberam que esse é um bom momento não só para barrar retrocessos nos direitos das mulheres, mas para marcar novos posicionamentos de que não se esqueceram lutas mais antigas delas pela liberdade. Para mim, aos 45 anos, é um rememorar de décadas passadas ver algo novo acontecendo pelas mãos das meninas jovens. Achei muito bonito e diverso.