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O ensino público nem sempre é gratuito, legislou o STF

Guilherme Perez Cabral

08/05/2017 04h00

O STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que as universidades públicas podem cobrar por cursos de especialização. De acordo com o site do tribunal, o entendimento adotado é no sentido de que a “garantia constitucional da gratuidade de ensino não obsta a cobrança, por universidades públicas, de mensalidades em cursos de especialização” (a decisão na íntegra ainda não foi publicada).

Tratamos desse tema no ano passado. O Art. 206, inciso IV, da Constituição Federal, prevê que a gratuidade do ensino público. Refere-se ao ensino em sentido amplo, sem fazer qualquer distinção. Portanto, me parece, a regra se estende à educação básica e à superior, incluindo a graduação e a pós-graduação, “stricto sensu” (mestrado e doutorado) e “lato sensu” (especialização).

Concordo, por isso, com o voto (vencido) do ministro Marco Aurélio. Ainda de acordo com o site do STF, ele defendeu que o tribunal não pode estabelecer distinção entre modalidades de ensino que a Constituição não prevê. Pois estaria, com isso, legislando, o que não é sua função.

Chegamos, assim, em um ponto fundamental na discussão da matéria: os limites da interpretação da lei (no caso, a Constituição) pelo julgador. Ao interpretá-la, isto é, ao conferir sentido ao texto, quais os limites impostos ao juiz? Há limites?

Na teoria clássica da separação de poderes, de Montesquieu, é o poder legislativo (no Brasil, o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais) que legisla, elaborando as leis e criando os direitos e obrigações de cada um. Ao juiz cabe apenas aplicar a lei ao caso concreto, subordinando-se a ela, sem nenhuma liberdade.

Sabemos, porém, hoje, que as coisas não funcionam muito bem assim. Afinal, o texto da lei não tem um sentido único e imutável. É, na verdade, um “projeto de sentidos” --explica Eduardo Bittar-- construídos e reconstruídos quando da sua aplicação. Ao aplicar a lei, o juiz tem de interpretá-la, o que significa, em alguma medida, criar o sentido da norma.

Quanto à interpretação (e sentido) que prevalece, isso decorre da força de convencimento dos argumentos apresentados ou, o mais comum, do argumento da força (o poder de quem interpretou).

Na decisão em favor da cobrança dos cursos públicos de especialização, o STF conferiu à Constituição um sentido diferente daquele que parecia o mais evidente. E deu a última palavra sobre o assunto.

Utilizou uma série de argumentos, articulando o Art. 206, inciso IV, da Constituição, com outras normas e princípios constitucionais. Desse modo, concluiu que, quando o texto prevê que o ensino público é gratuito, na realidade, ele está dizendo que o ensino público nem sempre é gratuito, pois o princípio não vale para uma modalidade específica de ensino, o curso de especialização.

É bastante complexa a questão dos limites da interpretação da lei pelo juiz. Não é nada evidente, como pode indicar uma análise superficial, a diferença entre o ato de legislar e o de julgar.

Enquanto não enfrentamos com cuidado essa questão, os onze ministros seguem lendo e contando para nós, conforme suas visões de mundo, o que está escrito na Constituição.