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Romanceiro da Inconfidência - O lirismo épico de Cecília Meireles

Oscar D'Ambrosio, Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação

"Liberdade, essa palavra/ que o sonho humano alimenta,/ que não há ninguém que explique/ e ninguém que não entenda". Seguramente esses são os versos mais famosos do Romanceiro da Inconfidência, reunião de poemas de Cecília Meireles (Rio de Janeiro, 7/01/1901 - 9/11/1964) que se tornaram um marco na forma de tratar um tema histórico com lirismo.

Publicado em 1953, o livro enfoca a história de Minas Gerais dos inícios da colonização até a Inconfidência Mineira, ocorrida em fins do século 18, e aglutina 84 "romances" (poemas épico-líricos cuja inspiração está na tradição popular hispânica), mais quatro "cenários" e textos que funcionam como prólogo e êxodo.

O conjunto, que teve magnífica edição comemorativa em 2004, com desenhos da artista plástica Renina Katz, realizados entre 1956 e 1958, concretiza uma jornada sobre o sentido de ser brasileiro. Enfoca o sofrimento dos escravos negros na exploração de metais preciosos no século 18, mas tem como núcleo os protagonistas da Inconfidência, como, é claro, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.

As trajetórias de Tomás Antonio Gonzaga - e da sua amada Marília - e de Alvarenga Peixoto e familiares são também objeto de atenção. Na parte final, merecem leitura atenta a personagem da rainha de Portugal, Dª Maria 1ª, a responsável pela confirmação das penas dos inconfidentes, dominada pela loucura que a tornaria célebre, e o testamento de Marília, com a célebre "Fala aos Inconfidentes Mortos".

O grande atrativo do texto é que ele se liberta da história oficial em dois aspectos. Primeiro, por tratar mais da condição humana do que da política propriamente dita, nos momentos em que enfoca o ambiente revolucionário. Segundo, a história contada coloca em primeiro plano a visão dos perdedores, os que foram traídos e tiveram como castigo a morte ou o degredo.


 

Musicalidade e mistério

Poeta essencialmente da sonoridade, mesmo ao tratar de uma questão histórica, Cecília Meireles imprime nessa obra a sua marca registrada, a musicalidade, introduzindo elementos misteriosos e diáfanos num dos momentos mais instigantes da história brasileira, em termos da formação de uma nacionalidade.

O tom etéreo herdado da poesia simbolista, o uso da redondilha maior (verso heptassílabo) sem rimas externas regulares, o exercício poético de adentrar nos mistérios do passado histórico, a busca de um sentido para os fatos e um universo de dualidades são cristalizados em trechos como "Em baixo e em cima da terra/ o ouro um dia vai secar./ Toda vez que um justo grita,/ um carrasco o vem calar./ Quem sabe não presta, fica vivo, / quem é bom, mandam matar" (Romance V).

A mescla entre o lírico e o épico gera uma obra ímpar. A trama é mostrada com ênfase em silêncios, rumores, portas trancadas e encontros à luz de velas. O valorizado é a atmosfera que caracteriza uma conspiração, o medo constante de ser pego e o drama psicológico de quem tem algo a esconder - e sabe que a descoberta disso constitui um passo para a morte.

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