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Tradicional festa de medicina da USP tem denúncias de abuso e discriminação

No final de setembro de 2014, o Show Medicina ganhou destaque no noticiário após seus integrantes pintarem sobre um grafite na avenida Rebouças, em São Paulo, um anúncio da 72ª edição do evento. - Gustavo Basso/UOL
No final de setembro de 2014, o Show Medicina ganhou destaque no noticiário após seus integrantes pintarem sobre um grafite na avenida Rebouças, em São Paulo, um anúncio da 72ª edição do evento. Imagem: Gustavo Basso/UOL

Izabelle Mundim

Do UOL, em São Paulo

10/03/2015 14h46Atualizada em 13/03/2015 15h49

"A graça é fazer piadas com minorias sociais, sexuais e raciais e com outras profissões da medicina, que são consideradas inferiores. Às alunas participantes resta o trabalho de costura dos figurinos, enquanto que aos alunos, chamados de ‘estrelos’, cabe a parte criativa da apresentação", assim o Show Medicina, tradicional entidade ligada a alunos da Faculdade de Medicina da USP, é descrito pelo médico psiquiatra e ex-membro da entidade, Leon Garcia, que depôs à CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) que investigou violações de direitos humanos nas faculdades paulistas.

A CPI foi instalada pela Assembleia Legislativa de São Paulo e, além de abusos nos trotes, tem investigado denúncias de piadas de cunho machista, racista e homofóbico feitas nas apresentações do Show Medicina.

O relatório final das investigações será divulgado nesta terça-feira (10) e depois deve ser encaminhado ao Ministério Público.

Em 1993, Garcia, então estudante da FMUSP, e outros colegas resolveram expor no jornal do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (Caoc), chamado BIP (Boletim Informativo Periódico), a primeira denúncia sobre trotes violentos aplicados pelo Show Medicina.

“[Na época], duas das pessoas que escreveram artigos nesse jornal foram agredidas fisicamente”, relatou Garcia.

Depois de formado, o psiquiatra descobriu uma tentativa do grupo de que ele fosse prejudicado no concurso para a residência médica.

Sigilo

Allan Brum, estudante do quarto ano de medicina na mesma instituição, ficou sabendo do caso narrado por Garcia em 2013. Os diretores da entidade utilizavam o termo ‘BIP Bomba’ e diziam que era um exemplo a não ser seguido. O estudante denunciou à CPI que foi forçado a beber durante um evento do Show Medicina.

Segundo Brum, os trotes do Show Medicina são seguidos de orientações pelo sigilo absoluto sob ameaça de “suicídio social”. “Um dos diretores diz: ‘em 1993 contaram o que acontecia e nós destruímos a reputação deles”, conta Brum, que sofreu um traumatismo craniano após ser forçado a beber em um dos rituais de ingresso no Show Medicina.

Segundo o advogado do Show e da Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz, também foco da CPI, Dr. João Rassi, o único sigilo existente diz respeito ao conteúdo do espetáculo. “A peça é uma surpresa para os alunos, por isso os ensaios não são abertos ao público, pois os estudantes dizem que essa é a graça do evento”, afirma.

“A ideia é um jogo de abuso moral, promovido por veteranos e médicos recém-formados, que acontece o tempo todo com o objetivo de fazer os calouros desistirem: ‘Vai embora, cotista!’, ‘Quem aqui é negro?’, ‘Quem aqui é viado?’”, relembra Allan.

“Já vi um calouro reclamar e levar um soco na cara. Nesse caso, ele começou a chorar, não voltou mais para o Show e também não denunciou”, conta.

Denúncias de homofobia e machismo

Na edição de 2014 do Show Medicina foram apresentados dois dos quadros que se tornariam denúncias na CPI. Um deles teria satirizado o estudante Felipe Scalisa, que é homossexual e militante LGBT.

“Eu me senti profundamente ofendido com a peça. Não é fácil ver 400 pessoas aplaudindo, rindo de você por defender direitos humanos”, afirmou Scalisa em depoimento à CPI.

Scalisa também teria sido representado no papel de um guarda chamado “Fiscaliza” que aparecia entre os esquetes, censurando as piadas.

“A CPI tem acusado as piadas nas apresentações de homofóbicas, mas, na verdade, metade dos integrantes do Show Medicina é homossexual, portanto, não há homofobia”, diz o advogado da instituição.

Segundo ele, a CPI questionou supostos casos de homofobia quando deveria ter se limitado apenas ao trote universitário. Ainda assim, segundo ele, casos como o narrado pelo médico Leon Garcia pertencem ao passado.

“Essa violência no trote não existe há muitos anos”, afirmou ao UOL.

Estudantes ligadas ao Coletivo Feminista Geni também têm questionado o fato de mulheres não pertencerem ao Show, tradição de mais de sete décadas.

Segundo Rassi, isso não configura discriminação de gênero. “As mulheres participam do Show Medicina, só não participam desse espetáculo específico”, afirma.

Segundo ele, a questão tem sido discutida internamente. “Os membros pensam em criar mais eventos para a participação da mulher”, diz.

A Faculdade de Medicina informou que o Show Medicina não possui nenhum de subordinação à faculdade e que os alunos têm ampla liberdade para fazer parte de agremiações, extensões e associações culturais.

Preconceito

Também objeto da CPI foram as letras das músicas cantadas no coral do Show.

“Abriu vaga no HC, mas esse ano não dá para entrar, vinte por cento eu não vou ter se a minha cabeça eu não achatar”, diz uma das letras que criticam a vinda de médicos residentes da região Nordeste, por meio do Provab (Programa de Valorização da Atenção Básica).

Outras letras exibidas na CPI ironizam enfermeiras negras e pessoas com Síndrome de Down e HIV.

“Que universidade é essa que se propõe a ensinar a se usar um bisturi, mas não se preocupa com o tipo de ser humano que está formando?”, questiona o deputado Adriano Diogo, presidente da CPI que investigou esses e outros casos.

“O Show é uma autodenúncia, basta assistir aos vídeos das apresentações para perceber o quanto é escancarado”, diz. “A questão é que eles nunca imaginaram que os abusos sairiam das quatro paredes”, constata.