Estudante do ensino público passa em única vaga para indígenas em medicina
Nascida e criada na aldeia Caieiras Velhas, em Aracruz, no Espírito Santo, a estudante Júlia Martins da Conceição, 18, comemora a aprovação no curso de medicina na Ufscar (Universidade Federal de São Carlos), no interior de São Paulo.
A jovem, que é da etnia tupiniquim, estudou a vida inteira em escola pública. "O ensino público, para mim, foi realmente excelente. Não tenho nada do que reclamar", diz ela.
"Sempre valorizei muito o ensino que eu tive. Eu não vou pela cabeça de quem fala, por exemplo, 'nossa, essa escola é ruim'. Acredito que quem faz a escola são os alunos", afirma ainda.
A estudante conta que, desde pequena, sempre foi muito curiosa e interessada pela leitura. "Minha mãe falava que, quando eu estava na creche, chorava para que minha irmã lesse para mim e me ensinasse a ler", afirma.
Já na escola, Júlia também levou essa curiosidade para a sala de aula e para os estudos. "Sempre que eu tinha alguma dúvida, eu perguntava", diz ela, que conta também recorrer muito ao Google para fazer pesquisas sobre temas que a intrigam ou que ela não conhece.
Em casa, a estudante diz que a mãe "puxava a orelha" —tanto dela como dos três irmãos mais velhos— se algum deles tirasse uma nota "mediana". "A gente nunca tirou nota ruim aqui em casa. Se tirasse nota mediana, que a minha mãe achasse que dava para melhorar, ela puxava a nossa orelha mesmo", conta.
A jovem concluiu o ensino médio em dezembro do ano passado, em meio à pandemia do coronavírus. Para superar as dificuldades de adaptação do ensino presencial para a modalidade remota, ela decidiu assinar uma plataforma online de estudos. "Mas, quando eu via que faltava algum conteúdo, pesquisava alguma outra aula no YouTube", diz.
Trajetória no ensino
Júlia conquistou a única vaga disponibilizada para indígenas para o curso de medicina, ofertada pela Ufscar por meio de um processo seletivo específico que é realizado anualmente, em paralelo ao vestibular tradicional da instituição. Para participar da seleção, é preciso comprovar o pertencimento a uma das etnias indígenas do território brasileiro.
Até o fim do ensino fundamental, a jovem estudou em uma escola que fica dentro da própria aldeia, a EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental) Indígena Caieiras Velhas.
À época em que concluiu essa etapa do ensino, no entanto, ainda não havia uma escola que oferecesse o ensino médio dentro da aldeia. Ela passou a estudar, então, no CEEMTI (Centro Estadual de Ensino Médio em Tempo Integral) Monsenhor Guilherme Schmitz, em Aracruz.
A inspiração para ingressar em uma carreira na área da saúde, segundo Júlia, veio de dentro de casa, com o incentivo da família —em especial, da mãe, que é técnica de enfermagem.
Minha mãe trabalhava no hospital e eu ficava apaixonada com o que ela contava. Acho que já existia dentro de mim essa vontade.
Júlia Martins da Conceição, estudante indígena que passou em medicina
Mas a "concretização" do pensamento pela medicina, diz, veio com o apoio dos professores no ensino médio e o desenvolvimento de atividades nas aulas de projeto de vida, disciplina que faz parte do currículo das escolas de ensino médio integral.
"O projeto de vida é um momento na escola em que a gente discute o que a gente realmente quer pro futuro, seja ele acadêmico ou emocional", diz a estudante. "É um momento para a gente refletir, os professores ajudam muito. E lá eles foram me auxiliando, perguntando, para realmente ter uma direção", afirma.
Defesa da política de cotas
Ao mesmo tempo em que comemora a aprovação na desejada carreira de medicina, Júlia diz lamentar que ainda sejam oferecidas poucas vagas para cotistas no ensino superior no Brasil.
Acho a política de cotas bem importante, mas ainda acredito que sejam muito poucas as vagas. Só tinha uma vaga para estudantes indígenas para medicina no vestibular [da Ufscar]. Eu estava concorrendo contra mais de cem pessoas. Acho que ainda precisa melhorar muito.
Júlia Martins da Conceição, estudante indígena que passou em medicina
"As pessoas falam: 'Ah, mas você usou cota, vai ser mais fácil para você'. Não, não é mais fácil", diz ela. "E, se fosse mais fácil, deveria ter mais pessoas fazendo. Você olha para as faculdades e ainda vê um desfalque", afirma.
Para Júlia, a política de cotas deveria não apenas ser melhor, mas também mais "rígida", de forma a evitar eventuais fraudes. Na última semana, por exemplo, a Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo) vetou a matrícula de mais de 500 estudantes aprovados por meio de cotas pelo Sisu (Sistema de Seleção Unificada) —após verificação dos dados, foi constatado que os candidatos não atendiam aos critérios exigidos.
"Tem que realmente existir mais: mais indígenas, mais negros, mais pardos na universidade", defende a estudante.
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