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RJ: Escola sofre ataques de intolerância religiosa após post de vereador

Alunos do Núcleo Avançado de Educação Infantil Angela Fernandes participam de atividade em quilombo, acompanhados da vereadora Benny Brioli - Divulgação
Alunos do Núcleo Avançado de Educação Infantil Angela Fernandes participam de atividade em quilombo, acompanhados da vereadora Benny Brioli Imagem: Divulgação

Waleska Borges

Colaboração para o UOL, do Rio de Janeiro

20/12/2021 10h56

Uma atividade organizada por uma escola de educação infantil da rede municipal de Niterói, no Rio de Janeiro, foi alvo de críticas nas redes sociais.

Os ataques ocorreram após o vereador bolsonarista Douglas Gomes (PTC) questionar a presença da também parlamentar municipal Benny Briolly (PSOL-RJ), uma mulher negra e transexual, durante a visita dos estudantes do Núcleo Avançado de Educação Infantil Angela Fernandes, com idades entre 4 e 5 anos, ser levado ao quilombo urbano Xica Manicongo.

As crianças acompanharam a apresentação da artista pernambucana, Lia de Itamaracá, ícone da Ciranda do Nordeste, recentemente reconhecida como Patrimônio Cultural do Brasil. Registrada em fotos no último dia 10, a visita ao quilombo no bairro de São Domingos fazia parte do evento cultural "Festival das Encruzilhadas".

'Xô xô galinha preta'

"Isso é vergonhoso se eu tenho um filho lá ele ia arrumar merda ele ia ver onde o festival de encruzilhada ia dá (sic)'', escreveu um internauta em resposta ao post de Gomes. A escola recebeu mensagens diretas cobrando explicações.

Gomes criticou a participação das crianças e o teor do evento: "Axel Grael (prefeito de Niterói) faz parceria com parlamentar travesti para levar crianças em terreiro". Ele também questionou: "Será que os pais estavam cientes? Lembre-se que são esses que tentam retirar a imagem de Cristo das escolas".

Nos comentários da publicação feita por Gomes, muitas pessoas reprovaram a presença dos alunos no quilombo: "Cara, isso tinha que acontecer com um filho meu, meu irmão a Cinderela ia virar abóbora rapidinho!!!! (sic)", disse um internauta. Outra pessoa perguntou: "Que inutilidade. Porquê não levar as crianças a museus ou pontos turísticos da cidade. Seria muito mais útil (sic)".

Para a vereadora Benny Briolly, os ataques direcionados à escola são racistas e transfóbicos. Após a repercussão negativa, ela resolveu arquivar a publicação que havia feito sobre o encontro no quilombo na rede social.

"Chamaram o Quilombo Urbano Xica Manicongo, que eu fundei em Niterói, de terreiro. Comentários como 'xô xô galinha preta' mostram esse racismo religioso de forma muito explícita e agressiva", comentou a vereadora.

Para a parlamentar, houve preconceito por parte de Gomes, que confundiu um quilombo, organização remanescente de escravizados, com um terreiro, local sagrado para religiões de matriz africana. Ela diz que sua equipe jurídica avalia o que pode ser feito.

"O racismo encontra corpos negros e todas suas especificidades. Como travesti preta, entendo que o racismo e a transfobia marginalizam corpos como o meu", lamentou.

Pais foram consultados e atividade é obrigatória por lei

A onda de ofensas levou a prefeitura de Niterói a se manifestar. "As 94 escolas da Rede Municipal de Niterói têm autonomia pedagógica para desenvolver atividades que defendam a liberdade de expressão e a agenda da educação antirracista", informaram em nota a Secretaria Municipal de Educação (SME) e a Fundação Municipal de Educação (FME).

A administração municipal de Niterói informou que a participação dos alunos foi autorizada pelos pais e que a atividade foi promovida em consonância com a lei.

"O referido trabalho está em consonância com as leis 10.639 (diretrizes e bases da educação nacional) e 11645, que versam sobre a cultura e a história dos povos afro-brasileiro e indígenas", informou a nota.

Após a equipe de articulação pedagógica da escola divulgar uma nota de esclarecimento em rede social, muitas pessoas se solidarizaram com a ação. "Parabéns pelo maravilhoso trabalho, nossas crianças merecem", comentou uma mulher no post.

Além do encontro com Lia de Itamaracá, as crianças conheceram o escritor e diretor de teatro Rodrigo França, que leu para eles seu livro "O pequeno Príncipe Preto".

De acordo com Mariangela Fernandes, diretora geral da escola, e Renata Fermam, pedagoga, a sociedade brasileira ainda é profundamente desigual e marcada por muitos preconceitos, apesar de toda a legislação presente no país que criminaliza o racismo, a lgbtfobia, a violência contra as mulheres e a intolerância religiosa.

"Os grupos políticos autoritários estão sempre tentando controlar as subjetividades e a própria diversidade e fazem isso de forma violenta e preconceituosa", disseram Fernandes e Ferman, em nota enviada ao UOL.

A diretora e a pedagoga acreditam que na situação ocorrida foi visto uma tentativa de desqualificação do quilombo, símbolo de luta e resistência da população negra.

"Não levamos as crianças a um terreiro, mas a um quilombo. Quilombo e terreiro são duas palavras que nos remetem à cultura afro-brasileira, que deve ser valorizada e respeitada", comentaram. Elas explicam que a escola tem investido em um trabalho pedagógico que valoriza outras narrativas históricas, em que o negro e o indígena não aparecem em um lugar único, estereotipado, de subalternidade e desqualificação.

Para o professor do Programa de pós-graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Ivanir dos Santos, a visita a um quilombo faz ajuda as crianças a entenderem como esses grupos mantêm a sua cultura tradicional e qual a importância deles na construção da identidade cultural brasileira.

"A atitude do vereador mistura alho com bugalhos. Inegavelmente foi um ato de racismo. Acredito que ele deverá responder sobre isso. Outra coisa é o vereador entender que vivemos num espaço laico, que os espaços públicos têm que ser de todos. Quando ele afirma um único grupo religioso, exclui os outros", avaliou Santos, também interlocutor da CCIR (Comissão de Combate à Intolerância Religiosa).

Procurado pela reportagem, o vereador Douglas Gomes diz que a postagem pretendia questionar se os pais haviam autorizado a presença dos filhos no passeio e se sabiam qual era o teor do evento. Ele diz que os questionamentos foram direcionados por seu pelo gabinete à escola municipal.

"A nosso ver, se tratava de um evento religioso mascarado de evento cultural, com a presença de vários pais de santo, tendo em vista que o local é um ponto de encontro LGBT e religioso. Nosso posicionamento é que educação religiosa é dada pela família e não imposta pela escola e muito menos por qualquer vertente política, em especial por se tratar de crianças de 4 e 5 anos", justificou o vereador.