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Das cotas ao doutorado nos EUA: 'mudou minha história', diz Gil do Vigor

O virologista Anderson Brito, a bióloga Samara Kister, o economista Gilberto José, a bióloga Anna Carla Alberto e o escritor Evandro Cruz foram cotistas na universidade. - Reprodução
O virologista Anderson Brito, a bióloga Samara Kister, o economista Gilberto José, a bióloga Anna Carla Alberto e o escritor Evandro Cruz foram cotistas na universidade. Imagem: Reprodução

Rodrigo de Souza

Colaboração para o UOL, de Rio de Janeiro

10/08/2022 04h00

Gilberto José Nogueira Junior, 31, ganhou o mundo como Gil do Vigor, mas foram os estudos que o conduziram à Universidade da Califórnia (EUA) para o doutorado. De fotocopiador, o escritor Evandro Cruz Silva, 30, chegou à lista Forbes Under 30 Brasil 2021. O virologista Anderson Brito, 36, se tornou uma das principais vozes da ciência no Brasil. A bióloga Samara Kister, 24, mergulhou nas experiências acadêmicas nos EUA, e Anna Carla Alberto, 32, parceira de profissão, descreveu novas espécies de animais na Espanha.

O que todos eles têm em comum? Foram cotistas e ganharam o mundo após passarem pela universidade pública no Brasil. Ao UOL, eles descrevem as dificuldades e as conquistas neste percurso, além de traçarem um comparativo das condições dos pesquisadores no país e por onde passaram.

Gil do Vigor, economista e ex-BBB

Fui a primeira pessoa da família a cursar a universidade. Sou muito grato pela oportunidade, mas sei o que significa ter sido o primeiro. Cresci em um contexto de baixa condição financeira na Região Metropolitana de Pernambuco.

Na graduação, trabalhei em período integral e emendava o expediente com as aulas noturnas. Chegava tarde em casa e acordava cedo. É uma rotina puxada ter que colocar comida na mesa e, ao mesmo tempo, se dedicar à academia. Felizmente, pude receber auxílio da universidade para me ajudar a custear a alimentação e o transporte. Sem as bolsas, não sei se seria possível. A educação transformou a minha história.

Gil do Vigor é economista, ex-BBB  e mestre pela UFPE, além de doutorando na Universidade da Califórnia (EUA). - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Gil do Vigor é economista, ex-BBB e mestre pela UFPE, além de doutorando na Universidade da Califórnia (EUA).
Imagem: Reprodução/Instagram

Fui aprovado em quatro programas de doutorado no exterior e optei pela Universidade da Califórnia. Estudar no exterior sempre foi um sonho que muitas pessoas julgavam como impossível pelo lugar de onde vim. A emoção e a alegria que senti ao vê-lo se concretizar é indescritível. Lá, percebi que o Brasil tem muitos educadores de extrema qualidade. O que falta é o investimento em educação.

Para pessoas como eu, as cotas são um auxílio para que continuemos acreditando que, algum dia, nossos sonhos se tornarão realidade, independentemente do lugar de onde viemos.

Evandro Cruz Silva, escritor e sociólogo

Evandro Cruz Silva é escritor e sociólogo, além de doutorando pela Unicamp e figurar na lista Forbes Under 30 Brasil 2021. - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Evandro Cruz Silva é escritor e sociólogo, além de doutorando pela Unicamp e figurar na lista Forbes Under 30 Brasil 2021.
Imagem: Arquivo Pessoal

Descobri que existia universidade pública por um golpe de sorte. Aos 15 anos, trabalhava como fotocopiador numa empresa e uma das funcionárias fazia parte da ONG Educafro, que oferecia cursinho pré-vestibular comunitário. Sou a primeira pessoa da minha família a se formar no ensino superior. Meu pai é motorista de ônibus e minha mãe diarista.

Entrei por cota na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) em 2011 e, desde então, me dedico a estudar a intersecção entre violência e ordenamento urbano. Faço parte de uma geração de pesquisadores de origem pobre que fez suas primeiras viagens internacionais pela universidade. A única maneira de colocar um aluno numa universidade internacional, seja ele pobre ou de classe média, é pelo financiamento público. Universidade pública e gratuita é uma raridade no mundo.

Em 2017 fui para a escola de verão da Universidade Humboldt de Berlim (Alemanha), com recursos da USP (Universidade de São Paulo). Em 2020 fui convidado para passar seis meses no Colégio de Michoacan (México) como pesquisador visitante, com bolsa da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).

Com as cotas, o conhecimento científico se diversificou. Para alguém de classe média, que tem alguma cultura universitária na família, fazer universidade pública é dar continuidade aos planos da vida dela. Para nós, é a mudança total dos planos.

Tenho uma sobrinha de 11 anos e sinto que ela vê em mim um exemplo. Viajei o mundo com a pesquisa, ganhei prêmios, estou concluindo o doutorado e sou feliz. Mas o que faz valer a pena é saber que ela, que também nasceu pobre, tem alguém para olhar.

Anna Carla Alberto, bióloga

Anna Carla Alberto é bióloga e professora, além de mestre pela Universidade de Jaén (ESP) e doutora pela UFRRJ. - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Anna Carla Alberto é bióloga e professora, além de mestre pela Universidade de Jaén (ESP) e doutora pela UFRRJ.
Imagem: Arquivo Pessoal

Moro em São Gonçalo, Baixada Fluminense, e brinco que sou filha de escola pública: estudei lá da creche ao ensino superior. Sou a primeira da minha família a ingressar numa universidade. Meu pai é semianalfabeto, minha mãe tem o ensino fundamental.

Entrei na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) por cota em 2010. Para me sustentar, contava com o auxílio estudantil e conciliava a faculdade com um emprego em telemarketing. Só no meio do curso consegui uma bolsa de iniciação científica na Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e, depois, me inscrevi para o intercâmbio da Uerj.

Na época eu fazia curso de espanhol então decidi tentar a Universidade de Jaén (Espanha). Quando soube que passei, quase caí dura. Embarquei em 2013. Na primeira aula, o professor disse que queria me fazer uma pergunta. "Recebo muitos brasileiros aqui, mas você é a primeira negra", ele disse. "Tem muitos negros no Brasil?".

Meses depois, fui selecionada para um projeto de iniciação científica e encontrei duas espécies de nematoides [vermes microscópicos] que ainda não tinham sido descritas na Espanha. Publicamos um artigo acadêmico sobre — meu primeiro artigo foi em espanhol.

Tive dificuldade com a língua. Em casa, repassava as anotações e ouvia as gravações das aulas. Quando ainda estava entendendo o conteúdo lá de trás, o professor já estava lá na frente. Às vezes, também era difícil fazer as pessoas entenderem por que eu estava ali - já perguntaram até se eu era prostituta.

Fiquei seis meses lá, depois retornei ao Brasil, me formei e concluí o mestrado na UFRRJ. Voltei para a Universidade de Jaén para um segundo mestrado. Cheguei a fazer algumas análises laboratoriais no Instituto Politécnico de Leiria (Portugal) e, depois que defendi o trabalho, minha pesquisa foi selecionada como uma das melhores produzidas naquele ano.

De volta ao Brasil, minha orientadora tentou me convencer a fazer o doutorado, mas eu não queria. Ser pesquisador no Brasil é difícil. Aqui, a gente tem que tirar leite de pedra - não é à toa que temos fuga de cérebros. Mesmo desanimada, fiz o doutorado na UFRRJ. Defendi a tese e passei num concurso para professor na rede municipal de São Gonçalo. Quero fazer um pós-doutorado e o plano A é permanecer no Brasil, mas o exterior oferece mais condições para a pesquisa. Lá esse trabalho é tratado como um emprego integral.

Anderson Brito, virologista

Anderson Brito é virologista, pesquisador do Instituto Todos Pela Saúde, PhD em ciência computacional pelo Imperial College (ING) e com pós-doutorado em epidemiologia genômica pela Universidade Yale (EUA).  - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Anderson Brito é virologista, pesquisador do Instituto Todos Pela Saúde, PhD em ciência computacional pelo Imperial College (ING) e com pós-doutorado em epidemiologia genômica pela Universidade Yale (EUA).
Imagem: Arquivo Pessoal

Estudei na rede pública do Distrito Federal da creche ao ensino médio. Sou filho de um motorista e uma ex-empregada doméstica. Me formei na escola sem saber o que era geometria e até biologia básica. Depois de reprovar cinco vezes no vestibular, desisti dos estudos para trabalhar, até que a UnB (Universidade de Brasília) adotou as cotas.

Aos 21 anos, fui aprovado com uma performance que me daria vaga em 90% dos cursos da UnB. As cotas me ajudaram a acreditar que eu podia estar ali. Costumo dizer que minha carreira foi como a escalada de uma montanha: a parte mais íngreme foi entrar na universidade. Depois, a escalada foi ficando mais fácil.

A oportunidade de estudar fora apareceu no doutorado, com o programa Ciência Sem Fronteiras. Meu domínio do inglês era praticamente inexistente. Fiz o exame de proficiência duas vezes até passar. No Imperial College (Reino Unido) recebi uma bolsa que bancava o curso e me garantia uma boa condição de vida. Também tinha acesso a computadores de alta performance no campus e a universidade custeou minha ida a congressos em outros países, como Japão e Espanha. Coisa que no Brasil eu provavelmente não conseguiria. Mas lá, também notei como a formação que tive na UnB era bastante sólida.

No pós-doutorado fui para a Universidade Yale (EUA) para fugir do desemprego. É estranho dizer isso, mas é a verdade. Fico triste pelas gerações mais novas que vivem o pior cenário do financiamento de pesquisa em décadas, e são cobradas em dobro. É uma luta inglória.

Meu desejo era me especializar lá fora e retornar para o país. Trabalhei na construção do Instituto Todos Pela Saúde e, com a pandemia, passei a me dedicar à divulgação científica. Até hoje recebo mensagens de pessoas me agradecendo por tê-las ajudado a proteger sua família. Esse esforço não vem só da vontade de comunicar. Quando mais novo, se eu ligasse a TV e visse um cientista negro, me sentiria mais incentivado a tentar ser um também.


Samara Kister, bióloga

Samara Kister é bióloga e professora de inglês, e estudou na Wayne State University (EUA). - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Samara Kister é bióloga e professora de inglês, e estudou na Wayne State University (EUA).
Imagem: Arquivo Pessoal

Cursei Ciências Biológicas na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) sabendo que aquele espaço também era meu. Quando cheguei, em 2016, fiz parte da comissão de heteroidentificação, do Conselho de Orientação Acadêmica do Instituto de Biologia, de coletivos e do centro acadêmico. Nunca me senti expulsa da universidade, mas já ouvi de professor: "Vocês já têm cota, o que mais vocês querem?".

Sem as cotas, eu não teria ido para o intercâmbio porque, na ausência delas, o coletivo que me encorajou a tentar a bolsa não existiria.

Na Wayne State University (EUA) pesquisei o impacto das organizações de estudantes negros americanos - equivalentes aos nossos coletivos acadêmicos - na permanência de alunos na graduação. No Brasil, temos a vantagem do ensino público gratuito. A Wayne State é pública, mas não é gratuita.

Minha bolsa cobria os custos básicos, como a mensalidade. Não dava pra comprar um computador, mas o CNPq custeava compras emergenciais, como roupa de frio — já cheguei a pegar 29 graus negativos. Também trabalhei na universidade pra fazer um dinheiro extra. Com o valor que juntei, visitei Chicago, Flórida e Nova York. Hoje também aproveito a formação que tive lá para dar aula de inglês. Não me deslumbrei com o intercâmbio. Sempre quis voltar para o Brasil. Passei muitas noites em claro na biblioteca e agora estou dando uma pausa nos estudos para depois seguir com o mestrado e o doutorado.