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Com cotas, Uneb chega a 73% de alunos negros, mas vê nº cair na pandemia

Em 2018, a Uneb passou a ter 73,4% do seu corpo discente autodeclarado preto ou pardo. - Hildo Alcântara/Você Manda/UOL
Em 2018, a Uneb passou a ter 73,4% do seu corpo discente autodeclarado preto ou pardo. Imagem: Hildo Alcântara/Você Manda/UOL

Daiane Oliveira e Rodrigo de Souza

Colaboração para UOL, de Salvador e do Rio

12/09/2022 04h00

Em 2002, a Uneb (Universidade do Estado da Bahia) foi a segunda universidade brasileira a adotar cotas raciais. Em 2018, passou a ter 73,4% do seu corpo discente autodeclarado preto ou pardo, tornando-se uma das poucas universidades a quase equiparar o perfil étnico de seus estudantes ao da população de seu estado - o mais negro do país, com 76,7% de negros, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Após a pandemia, contudo, houve uma queda na presença destes alunos. Em 2021 eles correspondiam a 68,8% dos graduandos, segundo o anuário da instituição.

Entre alunos negros e cotistas houve redução maior: 23,5% entre 2018 e 2021. Em resposta à reportagem após a publicação do conteúdo, a Uneb afirmou que a queda no número de estudantes negros e negras em 2021 é um fenômeno que atinge às universidades em geral e não apenas a Uneb, além de reforçar que, apenas no segundo semestre de 2022 a universidade retornou ao regime de 100% de aulas presenciais.

Pró-reitor de ações afirmativas da Uneb, Marcelo Pinto diz que os cotistas registraram maiores em razão das dificuldades materiais, atenuadas por meio da concessão de auxílios pela própria universidade, uma política diretamente dependente do orçamento disponibilizado pelo governo estadual, e, segundo ele, insuficiente para o acolhimento de todos os alunos.

Entre os incentivos disponibilizados pela Uneb para estudantes em situação de vulnerabilidade, há o Programa Afirmativa, que concede bolsas de pesquisa para cotistas, e o Mais Futuro, auxílio de R$ 300 a R$ 600 repassado pelo governo da Bahia. Durante o período mais agudo da pandemia, a instituição também distribuiu o auxílio financeiro emergencial, um depósito único de R$ 800 a 1,2 mil estudantes, e o auxílio conectividade disponibilizado em forma de pacotes de dados para celular a 1,5 mil alunos.

"O que a Uneb vem tentando fazer é oferecer novos instrumentos de permanência, mas isso não é suficiente para frear totalmente a evasão. Isso ameniza. Sem os incentivos, a evasão seria muito pior"
Marcelo Pinto, pró-reitor de ações afirmativas da Uneb

Uma resolução de 2018 da Uneb também prevê a criação de um programa de acompanhamento dos cotistas, mas a proposta nunca saiu do papel. Desta forma, a universidade não tem nenhum mapeamento sobre as razões de evasão dos alunos, tampouco identifica quais alunos já contavam com algum tipo de auxílio e quais ainda precisavam de suporte no pico da pandemia. No fim de 2021, a nova gestão da pró-reitoria de ações afirmativas assumiu o compromisso de concretizar a proposta do mapeamento.

Sobre os programas existentes na universidade para garantir a permanência de estudantes cotistas, a universidade reiterou que há mais de dez programas que compõem a política de assistência estudantil.

Os passos da diversidade na Uneb. Em consequência das reivindicações dos movimentos sociais, a Uneb implementou as cotas raciais em 2002, meses após a Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Como universidade estadual, passou a destinar 40% das vagas reservadas a pessoas negras. O percentual é superior ao previsto na Lei de Cotas (nº 12.711), que tem incidência nas universidades federais e destina metade de suas vagas a egressos de escolas públicas — sendo parte deste total direcionado a candidatos pretos ou pardos, indígenas e com deficiência.

Em 2007, a Uneb incorporou cotas para indígenas, e, em 2018, incluíu ciganos, pessoas com deficiência, com autismo, quilombolas, transgêneros, transexuais e travestis. Hoje, todos esses grupos são contemplados por uma política de afirmação por "sobrevaga", ou seja, um número de vagas extras em relação ao total previsto para o semestre. Em 2019, a universidade também instituiu um sistema de verificação documental para prevenir possíveis fraudes na seleção do vestibular.

O choque de realidade dentro da sala de aula. Mestra em pedagogia pela Uneb, Thiffany Odara ingressou na graduação na instituição por meio da política de cota racial em 2011. Mulher trans, negra e periférica, ela conta que já foi expulsa da sala de aula após ouvir de uma professora que a universidade não era para alguém do seu "tipinho".

"As cotas são de suma e total importância para se pensar o acesso dos corpos dissidentes à universidade. Mas também é importante pensar as cotas como uma política de acesso, que deve ser atrelada a uma política de permanência"
Thiffany Odara, mestra em Pedagogia pela Uneb

Como próximo passo, universidade mira cota na docência. Em 2022, a Uneb realizou seu primeiro processo seletivo com cotas para professores negros e indígenas - segundo dados de 2018 do Censo da Educação Superior, do Ministério da Educação, apenas 16,4% dos docentes das universidades públicas eram negros.

André Santana, colunista do UOL - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
André Santana, colunista do UOL
Imagem: Arquivo Pessoal

O concurso não destinava, em seu edital original, um número exato de vagas para estes candidatos. Isso violava a lei nº 13.182/2014, que prevê a reserva de 30% das vagas em concursos públicos para pessoas negras, bem como do Estatuto da Igualdade Racial e de Combate à Intolerância Religiosa de 2014, que estabelece o mesmo percentual de vagas reservadas nos certames.

Na ocasião, candidatos e ativistas de movimentos sociais acionaram o Ministério Público da Bahia, que emitiu uma recomendação para todas as universidades estaduais. Pressionada, a Uneb refez o edital, destinando 40 das 134 vagas do concurso para pessoas negras.

Professor do curso de comunicação da Uneb e colunista do UOL, André Santana vê que o imbróglio em torno do concurso reforça a urgência do debate sobre as políticas de inclusão. "Um estado como a Bahia, que tem um histórico de luta antirracista e de adoção de ações afirmativas, precisou de uma intervenção do Ministério Público para garantir o respeito à política de cotas. Isso mostra como a gente ainda precisa discutir as ações afirmativas, porque elas também têm a ver com o encorajamento dos alunos cotistas para que continuem na carreira acadêmica após a graduação", afirma.

O processo seletivo, que recebeu mais de 5 mil inscrições e ainda está em andamento, se envolve agora numa nova polêmica. Candidatos cotistas acusam a Uneb de diversas irregularidades, como o direcionamento de vagas reservadas para pessoas aprovadas por ampla concorrência e a falta de transparência quanto à colocação final dos avaliados. Os concorrentes reprovados se articularam para enviar ao Ministério Público uma nova reclamação.

"Foram mais de 200 inscrições de cotistas, e, na fase de heteroidentificação, a universidade não teria como convocar todo mundo. Eles chamaram 40 pessoas, entre elas, pessoas aprovadas por ampla concorrência, que foram selecionadas. Além disso, ainda não sei oficialmente a minha colocação final no exame", disse ao UOL uma candidata, que se diz lesada pelo processo e que preferiu manter o anonimato.

Em agosto, a Uneb soltou um comunicado destacando que a universidade se manteve aberta à escuta de toda a sociedade e que a instituição não teria "quaisquer motivos para promover dificuldades ou embaraços à entrada de docentes negros/as ou com deficiência em seu quadro funcional".

À reportagem, a universidade apontou, com veemência, "que todas as pessoas aprovadas autodeclaradas negras foram convocadas para essa fase do concurso, garantindo a transparência no que tange ao sistema de cotas".

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do indicado na versão inicial do texto, a legislação que reserva 30% para professores negros e indígenas na universidade é a Lei Estadual baiana, de nº 13.182/2014. O texto foi corrigido. Diferentemente do informado inicialmente, os alunos cotistas da Uneb são submetidos a uma análise de documentos e fotos, processo chamado pela universidade de “sistema de validação documental”, e não a uma “comissão de heteroidentificação”. O texto foi corrigido.