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OPINIÃO

'Me tornei defensora das cotas raciais na sala de aula', diz Lilia Schwarcz

A historiadora Lilia Schwarcz - Leo Martins/UOL
A historiadora Lilia Schwarcz Imagem: Leo Martins/UOL

Lilia Schwarcz, em depoimento a Yasmin Santos

Colaboração para o UOL, do Rio de Janeiro

29/08/2022 04h00

A historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, 64, foi uma das primeiras signatárias do manifesto contra cotas raciais a rever publicamente sua opinião. Professora titular do departamento de antropologia da USP (Universidade de São Paulo), Lilia dedica seus estudos à história brasileira e, entre outros temas, às questões raciais - o que fez com que a assinatura soasse contraditória a muitos de seus colegas. Sua opinião sobre a política foi revista pouco tempo depois, mas ela diz ter se tornado realmente defensora das cotas quando viu seu impacto na sala de aula.

O manifesto do qual Lilia é signatária contou com 114 assinaturas de sociólogos, artistas, historiadores e ativistas que se opunham aos projetos de Lei de Cotas (PL 73/1999) e do Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000). O documento também foi uma reação às cotas raciais adotadas em instituições como UnB (Universidade de Brasília) e Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro).

Dezesseis anos após o manifesto e dez anos após a adoção da Lei de Cotas (nº 12.711/2012), Lilia explica por que mudou de posição e hoje considera a política fundamental para combater as desigualdades sociais. "As cotas estão deixando as universidades públicas mais plurais, mas não só no critério quantitativo", diz. "A entrada de estudantes negros significou uma pressão muito positiva nos nossos currículos".
Abaixo, o depoimento concedido ao UOL e que foi editado para fins de clareza.

Nem todo debate é destruidor

"Em 2006, eu já refletia sobre cotas raciais, mas pensava que elas rompiam com a norma democrática e que não seriam uma boa política para o Brasil. O manifesto chegou a mim por um grupo de pesquisadores do qual eu fazia parte e que tem essa perspectiva humanista, um pouco utópica até, de que só existe uma raça.

Continuo acreditando que, biologicamente, só há uma raça, a humana. Mas, como cientista social que sou, fui aprendendo que há o fenômeno da raça social, quando a sociedade trapaceia com a natureza e a biologia para construir valor, processos de subordinação e de divisão social.

Foi assim que me coloquei naquela circunstância, porque nós sabemos que, paradoxalmente, muitas políticas racistas já foram feitas em nome da raça - o nazismo, por exemplo.

Como diz o conselheiro Aires, grande personagem do Machado de Assis: as coisas só são previsíveis quando já aconteceram. Naquele momento, eu não entendia que a política de cotas partia da noção de equidade aristotélica, em que é preciso tratar desigualmente aos desiguais. Parecia-me uma proposta frágil. Eu deveria ter feito uma leitura cuidadosa, entendido que se tratava de um manifesto mais amplo, como era esperado de uma pessoa na minha posição.

Já na época, trabalhava no Inclusp (Programa de Inclusão Social da USP), projeto que se mostrou importante, apesar de suas limitações. Defendíamos que alunos que viessem de escola pública não pagassem taxa de matrícula, era uma tentativa de incluir negros na universidade.
Meus colegas do Inclusp não entendiam por que eu havia assinado - assim como eu não entendia a reação deles, devo dizer. Logo em seguida, participei de um Congresso na Bahia e também lá apontaram o meu ato como contraditório.

Lembro-me de ficar muito dividida entre a lealdade a esse grupo de pesquisadores, cujo trabalho respeito até hoje, e me abrir ao debate, ao questionamento. Ao conversar com o Dr. Alberto da Costa e Silva, que era francamente a favor das cotas, ele me disse: "o tempo lhe dirá". Nada como a maturidade de uma pessoa como o Dr. Alberto.

Nem todo embate é destruidor, muitas vezes pode ser produtivo - e a boa ciência é aquela que se abre ao debate, não aquela que se fecha. Claro que no momento todos esses embates são difíceis, machucam. Mas são muito positivos a longo prazo. É a possibilidade de rever a sua prática. Como diz a Coalizão Negra por Direitos, a prática é o critério da verdade.

De contrária à defensora

Retrato de João Victor dos Santos, estudante de Ciências Sociais por cotas na UFES, Universidade Federal do Espirito Santo - Gabriel Lordello/UOL - Gabriel Lordello/UOL
Retrato de João Victor dos Santos, estudante de Ciências Sociais por cotas na UFES, Universidade Federal do Espirito Santo
Imagem: Gabriel Lordello/UOL

A defesa da política de cotas vem muito da minha percepção em sala de aula. Há um tempo, li que houve um aumento de 75% de negros no ensino superior entre 2014 e 2018. Isso é fundamental: as cotas estão tornando as universidades públicas mais plurais, mas não só no critério quantitativo. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), temos 56,4% de população negra (pretos e pardos), ou seja, o aumento da presença de negros nas universidades é uma questão de justiça. Do ponto de vista qualitativo, a entrada de estudantes negros significou uma pressão muito positiva nos nossos currículos.

Eu, que me considerava já tão impactada pelo tema da questão racial, dava um curso chamado "História do Pensamento Brasileiro", cuja bibliografia era formada apenas por homens brancos. Como estudo Lima Barreto há tempos, passei a introduzi-lo na bibliografia também. Mas, por anos, dei um curso em que não existiam autores negros que, por justiça, deveriam fazer parte do currículo.

Fui questionada pelos estudantes e repensei toda a disciplina. Introduzi autores como Lélia Gonzalez (1932-1994), Abdias Nascimento (1914-2011), Guerreiro Ramos (1915-1982), Sueli Carneiro e Clóvis Moura (1925-2003). A pressão dos alunos negros questionou as estruturas mais naturalizadas da universidade.

Agora, muitos desses autores fazem parte da minha bibliografia básica pessoal. A biblioteca do meu escritório foi profundamente alterada com a chegada dessa literatura que, sim, eu já podia ter acesso há anos, mas que, não por coincidência, eram autores que não faziam parte do circuito das grandes editoras e eram lidos de forma lateral.

A historiadora Lilia M. Schwarcz foi uma das primeiras signatárias do manifesto contra cotas raciais a rever publicamente sua opinião. - Leo Martins/UOL - Leo Martins/UOL
A historiadora Lilia M. Schwarcz foi uma das primeiras signatárias do manifesto contra cotas raciais a rever publicamente sua opinião.
Imagem: Leo Martins/UOL

O futuro da política

É preciso reconhecer que as cotas são uma política insuficiente - elas não dão conta do racismo brasileiro como um todo -, mas isso não quer dizer que elas sejam ineficazes. A universidade é onde formamos profissionais e as discussões ali propostas têm potencial de ecoar na sociedade.

Nesses dez anos, as dúvidas com relação ao desempenho acadêmico já foram sanadas. O nível das universidades não caiu, pelo contrário, e as cotas permitiram que elas se tornassem melhor e mais plural. Eu diria que é uma política de sucesso.

Mas é preciso manter-se vigilante. No Congresso, contudo, de 67 projetos sobre a lei, quase metade (31) propõem a redução de vagas para negros.

Além disso, ainda não temos os resultados que gostaríamos de ter. Nosso professorado é majoritariamente branco e a maior parte de alunos na pós-graduação também. E ainda precisamos dar mais atenção à inclusão das populações indígenas.

Outra questão é a permanência desses estudantes. Precisamos acompanhar como esses alunos cotistas conseguem se manter e fornecer auxílios estudantis - isso ainda não foi construído. Não estou me referindo a acompanhamento intelectual, mas a um acompanhamento cotidiano, ainda mais nessa crise econômica.

Toda política pública pode e deve ser aprimorada. E deveríamos usar o marco desses dez anos não para tentar colocá-la abaixo, mas para aperfeiçoá-la.

Eu, pesquisadora branca

Apesar de tantos anos de pesquisa, é recente o olhar atento que passei a ter com relação ao meu lugar social, até por influência e pressão desse novo alunado. A tese de doutorado da Lia Vainer Schucman aponta que a branquitude refletia sobre o outro e nunca sobre si, sobre o seu lugar. Muitos conflitos e problemas não foram referenciados nas pesquisas acadêmicas ao longo dos anos justamente por essa falta de racialização.

Cida Bento também concebe o conceito de "pacto narcísico da branquitude". A forma como ela constrói essa ideia é fenomenal. Redireciona o nosso olhar não só para o legado da escravidão para os negros, mas para os brancos também. A quantidade de não-ditos sobre o papel da população branca em relação à escravidão e ao racismo, o que isso significou e o que significa para a sociedade brasileira?

Demoramos muito para falar dessa situação de conforto ontológico em que a branquitude vive no Brasil. A ideia de meritocracia é ancorada nesse acordo de autopreservação. Mas que mérito é esse se as condições de concorrência não são iguais?

Eis a nossa maior contradição: a questão racial. Negros não são minorias demográficas, mas foram minorizados na representação educacional, política. A linguagem do Brasil é a desigualdade. E os únicos que sempre estiveram atentos ao racismo como uma questão inadiável foram os movimentos negros."