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Professor ligado a Damares impede docente negro concursado de assumir vaga

Ilzver Matos, doutor em direito, foi aprovado no concurso de professor para a Universidade Federal de Sergipe, mas não foi nomeado - Arquivo Pessoal
Ilzver Matos, doutor em direito, foi aprovado no concurso de professor para a Universidade Federal de Sergipe, mas não foi nomeado Imagem: Arquivo Pessoal

Thiago Leão

Colaboração para o UOL, de Aracaju (SE)

30/09/2022 04h00

Aprovado em concurso público em dezembro de 2019 para ser professor da UFS (Universidade Federal de Sergipe), o doutor em direito Ilzver Matos chegou a ser convocado para assumir o cargo, mas teve a nomeação barrada após um outro docente da instituição entrar na Justiça. O postulante, Uziel Santana, porém, não cumpre as exigências para o cargo. Além disso, é acusado de não ter dado aulas por longos períodos, enquanto dizia estar fazendo o doutorado, que não concluiu, e de burlar o regime de dedicação exclusiva para atuar como assessor parlamentar de deputados federais da bancada evangélica.

Em meio à disputa, os alunos relatam que a oferta de turmas foi reduzida. Como a validade do concurso expira nesta sexta-feira (30), organizações do movimento social e representativas do mundo jurídico, que acompanham o processo desde o início e acusam a universidade de driblar a Lei de Cotas, pretendem levar o caso à OEA (Organização dos Estados Americanos).

Enquanto a universidade se divide entre realizar um novo concurso público ou empossar Matos, o Ministério Público Federal recomendou ampliar o prazo do concurso. A UFS acatou e estendeu a validade até 1º de janeiro de 2024.

O imbróglio começou já na convocação do edital, que não previa uma quantidade de vagas exclusiva para pessoas pretas e pardas, conforme estabelece a Lei de Cotas. Após protestos, a UFS modificou o documento. Ao fim do processo, Matos ficou em segundo lugar. O primeiro foi nomeado, e ele seria o próximo da fila para assumir a vaga que surgisse. Isso ocorreu em março de 2021, após um docente se aposentar.

O caso ganhou contornos de conflito quando Uziel Santana, professor do departamento de Ciências Contábeis do campus da UFS de Itabaiana, no agreste sergipano, pleiteou a vaga. Inicialmente, junto à universidade. Depois, na Justiça.

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Manifestação de movimentos sociais para a Universidade Federal de Sergipe nomear como professor o doutor em direito Ilzver Matos, aprovado em concurso em 2019.
Imagem: Divulgação

Para Santana, a UFS deveria, antes de convocar concursados, ter aberto um edital interno. Assim, ele teria prioridade à vaga no campus de São Cristóvão, o maior da instituição e onde fica baseado do departamento de Direito.

Seguidor do candomblé e militante do movimento negro, Matos vê racismo religioso no caso, já que Santana é presidente licenciado da Anajure (Associação Nacional de Juristas Evangélicos) e não lançou mão do mesmo recurso nos outros concursos ocorridos para o departamento, quando os aprovados eram cristãos.

Fundada em 2012, a entidade é ligada a Damares Alves (Republicanos), ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Bolsonaro. A agora candidata ao Senado pelo Distrito Federal é apontada como uma de suas fundadoras ao lado de Uziel Matos e outros juristas.

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Damares Alves, ex-ministra do governo Bolsonaro, e o advogado Uziel Santana Santos (de gravata ao centro) durante o lançamento da Anajure (Associação Nacional de Juristas Evangélicos).
Imagem: Divulgação/Anajure

Graduado pela UFS e com mestrado pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), Santana apresenta no currículo Lattes que seu doutoramento está em andamento desde 2015.

No entanto, um documento assinado por 60 entidades reúne indícios de que, de 2008 a 2012, Uziel pediu afastamento para doutorado com duração de quatro anos, mas não concluiu o curso. Além disso, mesmo tendo vínculo de dedicação exclusiva com a UFS e ainda afastado por supostamente estar concluindo seu doutoramento, ele ocupou em cargos de gabinetes de parlamentares da bancada evangélica entre 2017 e 2020.

Entre os que o receberam, estão os deputados Leonardo Quintão (MDB-MG), entre 7 de dezembro de 2017 e 8 de fevereiro de 2019; Pastor Roberto de Lucena (Podemos-SP), entre 19 de setembro de 2019 e 27 de maio de 2020; e Pastor Eli Borges (Solidariedade-TO), entre 28 de maio de 2020 e 13 de dezembro de 2020.

O UOL tentou contato com o professor Uziel Santana, foi informada pelo seu escritório de advocacia que o professor deveria retornar o contato, mas até a publicação desta reportagem não recebeu resposta.

Além disso, Santana possui a titulação de mestre e não de doutor, como pede o departamento de Direito da UFS. Ainda assim, a resposta institucional da UFS foi a de seguir a judicialização, retirar a convocação de Matos e aguardar que a Justiça Federal julgue o caso.

Desde o início da disputa, outros dois professores se aposentaram no departamento, que não preencheu a vaga à espera de uma resolução judicial.

Durante o processo, Matos tentou fazer valer a Lei de Cotas ao pleitear uma das duas novas vagas abertas. O colegiado do departamento de direito recusou, por 5 votos a 4, mas a instância superior, o Centro de Ciências Sociais Aplicadas aprovou a nomeação.

Entretanto, ele não tomou posse, devido a recursos administrativos. Uma reunião do Conselho Universitário, instância deliberativa máxima da UFS, aconteceria nesta quinta (29), mas Santana conseguiu na Justiça uma liminar para impedir que o encontro acontecesse. Para Matos, a estratégia do docente é fazer o concurso prescrever.

Por isso, ele acusa a UFS de promover e permitir uma campanha de racismo institucional, uma vez que a universidade não tomou providências para cumprir a Lei de Cotas imediatamente.

A atual administração da Universidade Federal de Sergipe nega que haja racismo institucional no caso. Para o reitor da instituição, Valter Joviano, trata-se de uma questão de ordem administrativa em que há, de um lado, o professor Ilzver reivindicando a posse pela Lei de Cotas e, do outro, o professor Uziel requerendo remoção interna através do regimento e estatuto da instituição.

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Valter Joviano, reitor da Universidade Federal de Sergipe
Imagem: Thiago Leão/UOL

"Temos decisões que envolvem instâncias colegiadas e os trâmites para que essas decisões sejam revistas estão sendo seguidos. Espera-se que a resolução do conflito ocorra dentro das instâncias legais. Não compete à figura de uma pessoa, mas sim às instâncias da instituição", defende.

Primeiro reitor negro da UFS, Joviano argumenta que a universidade foi uma das primeiras a adotar as cotas e que ele defende a política afirmativa.

Para Matos, tanto a lei quanto uma determinação do STF (Supremo Tribunal Federal) estão sendo desrespeitadas no caso. "Quando vejo as justificativas baseadas em normas administrativas interpretadas de acordo com as preferências pessoais dos setores da UFS em relação a mim, compreendo a preocupação do STF com a administração pública racista institucional brasileira que burla a lei de cotas e constrói artifícios para não efetivar a política pública de ação afirmativa", afirma, referindo-se à decisão da corte de julgar constitucional a lei que reserva vagas para negros em concursos.

Enquanto o caso se arrasta por mais de um ano, o prejuízo já é percebido pelos alunos. Fabrício Rosa, estudante de direito e representante dos alunos no colegiado do curso durante parte do processo de Ilzver, afirma que a oferta de turmas foi reduzida com a demora pela resolução do caso.

"O departamento oferta turmas a outros cursos que tem entre disciplinas obrigatórias com cunho jurídico, como contabilidade, administração e serviço social. Essas turmas estão sendo ministradas por professores substitutos, com contrato de até dois anos, ou voluntários", destaca.

De acordo com ele, todo semestre há uma grande "dança das cadeiras", em que o departamento tentar suprir a demanda por professores. Esta rotatividade, diz, seria suprida com a nomeação de Matos, aprovado para ministrar aulas de Direito Civil, Direito do Trabalho e Introdução ao Direito, mas que possui qualificações para lecionar em diversas áreas do direito. O professor contabiliza que há mais de 10 turmas sem professor na área do concurso para o qual foi aprovado.

"Dentro do departamento, não temos nenhum professor que estuda os assuntos que Ilzver estuda. Poderíamos ampliar as visões acadêmicas, mas a ausência da nomeação é prejudicial aos alunos, à instituição e à diversidade de pensamento no mundo jurídico", afirma o estudante Fabrício Rosa.

Andréa Depieri, coordenadora do curso de Direito da UFS, reconhece a carência de docentes no departamento. Mas diz que isso ocorre por outros motivos. "Nesse semestre, tivemos falta de professores porque, além dos pedidos de exoneração, licenças e o período eleitoral nos impediram de contratar substitutos. Mas essa foi uma situação esporádica, não definitiva", reforça.

Mobilização popular para levar caso à OEA

Os movimentos sociais ligados à questão de raça e de direitos humanos em Sergipe vêm se mobilizando em apoio à causa de Ilzver. Lídia Anjos, integrante do Instituto Braços e do Movimento Nacional de Direitos Humanos, lamenta que a UFS tenha um posicionamento desfavorável à política de cotas e critica o reitor.

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Ilzver Matos (ao centro), aprovado em concurso para professor da Universidade Federal de Sergipe, protesta para assumir vaga.
Imagem: Divulgação

"Entendemos que o racismo estrutural é a tônica na sociedade brasileira. Pela primeira vez na nossa história, temos um reitor negro na UFS, mas estamos prestes a perder o prazo do edital para nomeação de Ilzver", diz. As entidades reivindicam a prorrogação do prazo para o concurso expirar até que o impasse seja resolvido.

Para Lídia, a motivação de Santana não é jurídica, mas, sim, política. "Por isso vamos continuar denunciando, vamos a todas as instâncias nacionais e internacionais. Estamos com a peça pronta para fazer denúncia à Organização dos Estados Americanos sobre o caso mais emblemático de racismo estrutural no Brasil no ano em que a política de cotas comemora 10 anos", revela.

Presidente do sindicato que representa os professores da UFS, Romero Venâncio faz coro com Lídia na crítica à UFS por sua opção de não aplicar a lei de cotas. Para ele, o currículo do professor Matos é comprovação da qualidade do trabalho.

"Trata-se de um alguém altamente preparado, currículo invejável, com experiência, preparadíssimo para ser professor na UFS, na graduação e na pós-graduação. Ilzver está sofrendo é o prejuízo que a universidade também sofre porque o objetivo da universidade pública é ter bons quadros para servir à sociedade", diz.