USP: alunos de medicina em greve contra programa que capta recurso privado

Desde 7 de março, os estudantes de medicina da USP (Universidade de São Paulo) estão em greve contra a direção da faculdade, uma das mais tradicionais do país.

O movimento é conduzido por alunos do primeiro ano ao quarto, mas contou com a adesão de alunos do quinto e do sexto anos na semana passada. Estes últimos ficaram das 19h da quinta-feira (21) às 7h do sábado (23) sem atender os casos ambulatoriais e em escala mínima para os casos urgentes.

Não há previsão de fim do movimento.

O que aconteceu

Os alunos têm três reivindicações:

  1. O fim do programa Experiência HC;
  2. A revisão da prova de residência, com o retorno do modelo anterior à pandemia;
  3. A extensão do prazo para contratação de outro fornecedor para o restaurante universitário;

A Faculdade de Medicina da USP tem 1.050 alunos, dos quais 350 estão no quinto e no sexto anos. O Centro Acadêmico afirma que todos os estudantes aderiram ao movimento, embora os dos últimos anos, por estarem dedicados ao internato, estão apenas fazendo paralisações pontuais.

Experiência HC

O programa "Experiência HC" foi criado no ano passado. É um curso de extensão no qual estudantes de outras faculdades podem fazer até três disciplinas no Hospital das Clínicas.

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Custa R$ 8.450,00 por especialidade, além de uma taxa de R$ 350,00 de inscrição no processo seletivo. A exigência é que os alunos estejam entre o quarto e o sexto ano da faculdade.

Para os alunos da Faculdade de Medicina da USP, o Experiência HC "representa um programa de mercantilização e privatização do ensino e do espaço público".

Cobrar valores exorbitantes de pessoas abastadas para complementarem sua educação num espaço que é mantido por investimento estatal abre prerrogativas para uma cada vez maior privatização de faculdades e universidades públicas Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, em documento divulgado no dia 8 de março

O programa começou em agosto do ano passado, quando foram abertas 230 vagas. Para a turma iniciada em março deste ano, o programa foi ampliado para 690 vagas.

"A justificativa para o programa é financeira mesmo", diz o presidente do Centro Acadêmico da Faculdade de Medicina da USP, Tales Areco. "O problema é que passa-se a depender demasiadamente do capital privado para financiar uma instituição pública, e isso faz com que o governo entenda que não precisa mais dar tanto dinheiro, pode haver um entendimento de que as universidades podem ter financiamento próprio."

A Faculdade de Medicina reconhece que o programa "tem como princípio trazer recursos privados para sua aplicação no ensino público", mas ressalta sua "abordagem inclusiva", já que reserva 10% das vagas para alunos ingressantes por meio de políticas afirmativas.

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Em nota enviada ao UOL, a Faculdade diz que o Experiência HC não é um programa de estágio, mas um "programa de extensão da graduação" criado por decisão formal da instituição.

A criação do programa e sua proposta passaram por ampla discussão em diversas instâncias institucionais, tendo sido aprovadas pelos órgãos máximos da faculdade (congregação) e do HC (Conselho Deliberativo), composto pela direção da faculdade, presidentes de comissões, chefes de departamentos, professores-titulares, professores-doutores, professores associados, funcionários e representantes dos alunos de graduação e pós-graduação Faculdade de Medicina da USP, em nota enviada ao UOL

Prova de residência

Os estudantes reclamam da transformação da prova para ingresso na residência ter se tornado um concurso com questões objetivas, sem prova prática.

Até a pandemia, o processo seletivo para a residência no Hospital das Clínicas era composto por uma prova objetiva, uma prova prática e uma entrevista. Em dezembro de 2022, o Conselho Nacional de Residência Médica acabou com a exigência de entrevista e, por causa da pandemia, as provas práticas foram suspensas - e nunca mais voltaram.

Com isso, segundo os estudantes da USP, a prova teórica passou a ser 90% da nota da prova de residência, o que acaba "negligenciando a real prática médica e todas as demais habilidades necessárias a um médico", dizem os alunos, na nota divulgada no dia 8 de março.

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Segundo o presidente do Centro Acadêmico, com o modelo antigo, 80% dos candidatos da USP que faziam a prova eram aprovados. Agora, esse índice é de cerca de 25%.

A direção da Faculdade de medicina contesta as cifras. Na nota enviada ao UOL, afirma que a relação de aprovados entre os candidatos da USP e os demais é de quatro para um desde 2018, vantagem que se manteve mesmo sem a prova prática. A proporção, diz a faculdade, permaneceu mesmo diante do aumento do número de candidatos, de 3.159 em 2018 para 6.097 em 2023.

O presidente do Centro Acadêmico reclama da mensagem que a mudança pode passar. "Acaba fazendo com que estudantes de várias instituições olhem para o internato com certo desprezo, porque em vez de 'perder tempo' com a prática, precisam decorar questões para passar na prova objetiva", afirma Tales Areco.

Ao UOL, a Faculdade de medicina contou que a Congregação, órgão máximo da instituição, "acaba de aprovar" o "estudo de novos modelos de realização que permitam a ampliação do número de participantes".

Restaurante universitário

Até agora, a maior vitória dos grevistas foi em relação ao restaurante universitário, que fica no Porão da Faculdade, área ocupada pelos estudantes desde 1934. No início deste ano, a direção da Faculdade notificou o restaurante para que saísse do Porão em até 60 dias, ou seria despejado e os estudantes seriam retirados do Porão.

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O orçamento da faculdade subsidia a alimentação dos alunos. Estudantes da faculdade pagam R$ 2 por refeição no local. O preço sem subsídio é R$ 54 por quilo.

Segundo a direção, o restaurante ocupa o espaço de maneira irregular, por meio seguidas renovações contratuais que já duram mais de dez anos. A Faculdade agora quer fazer uma licitação.

Dias depois da greve, no entanto, a Faculdade de medicina concordou em dar até julho para que a empresa que opera o restaurante saia do local.

Diálogo

Segundo Areco, a notificação ao restaurante foi "o estopim para a greve". "A postura da direção chamou muita atenção, porque sempre tivemos uma relação cordial. Não sei dizer se a atual direção tem alguma indisposição em relação ao CA, mas ela é vista com tendo algumas atitudes autoritárias mesmo."

O presidente do CA reclama que a direção vem se dizendo disposta ao diálogo, mas isso, segundo ele, até agora se resumiu a ouvir as demandas dos estudantes e fazer apresentações sobre as questões levantadas por eles.

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A direção da faculdade de medicina disse ao UOL, no entanto, que mantém "diálogo permanente" com os alunos e criou uma "comissão de interlocução e diálogo" depois da deflagração da greve.

"A diretoria fez três reuniões específicas de esclarecimento para cada um dos tópicos da pauta dos alunos. As reuniões foram presenciais e transmitidas online para toda a comunidade da FMUSP, demonstrando a transparência no diálogo. Na última semana, a pedido dos alunos, foi feita uma reunião da congregação (órgão máximo da FMUSP) aberta para toda a comunidade, para que os alunos apresentassem as suas pautas da greve", diz a Faculdade, em nota.

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