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Matemática e bullying: como é a vida de crianças superdotadas no Brasil

André Bernardo

Do Rio de Janeiro para a BBC Brasil

26/11/2016 15h31

João Gabriel do Nascimento, de 10 anos, executa, com razoável desenvoltura, Águas de Março, de Tom Jobim, ao violino. Com dores no pescoço, diz, em tom de brincadeira, que está se sentindo como o astrofísico inglês Stephen Hawking. Filho de uma diarista e um pizzaiolo, João mora no Morro do Cerro Corá, no Cosme Velho, Rio de Janeiro; estuda na Escola Municipal José de Alencar, em Laranjeiras, e aprendeu a ler, sozinho, aos quatro anos. Quando crescer, ainda não sabe se vai ser escritor ou goleiro do Flamengo.

Gustavo Torres da Silva, de 18 anos, é aluno de Engenharia Física na Universidade de Stanford, nos EUA. Nascido no Capão Redondo, bairro pobre da periferia de São Paulo, Gustavo foi aprovado em duas instituições brasileiras - USP, em Engenharia Elétrica, e UFSCar, em Engenharia Física - e cinco americanas: Columbia, Duke, MIT, Harvard e Stanford. Na infância, gostava de ver o pai, técnico de eletrônica, montar e desmontar os eletrodomésticos que trazia para casa.

O que os dois têm em comum? São alunos com altas habilidades, mais conhecidos como superdotados.

Para ser considerado um superdotado, explica a pedagoga Maria Clara Sodré, PhD em Educação pela Universidade de Columbia (EUA), o aluno precisa apresentar, entre outras características, precocidade ou alto potencial em pelo menos uma das sete inteligências definidas pelo psicólogo americano Howard Gardner em sua Teoria das Inteligências Múltiplas.

Em outras palavras: ele precisa ter uma habilidade muito acima da esperada para a sua idade.

No caso de João, sua inteligência é a musical. Como Sivuca e Hermeto Paschoal, dois dos mais virtuosos artistas brasileiros, o menino consegue extrair timbres e sons de qualquer instrumento - musical ou não.

Já a inteligência do Gustavo é a lógico-matemática. Incentivado por seu pai, Adalberto, o garoto gostava de desparafusar o joystick do videogame para ver como funcionava por dentro.

"Alunos superdotados são como diamantes brutos. Se você não lapidá-los, eles terão seus talentos desperdiçados", alerta Maria Clara Sodré.

Garimpando talentos

Na maioria das vezes, quem "garimpa" esses diamantes brutos é a própria família. É o caso de Gustavo, que atribui todo o mérito de suas conquistas acadêmicas ao esforço incansável dos pais.

"Se eles não me tivessem dado livros para ler, quebra-cabeças para montar e cursos para estudar, eu não teria chegado tão longe", reconhece o rapaz.

Em alguns casos, é o professor, em sala de aula, o primeiro a detectá-los.

Foi o que aconteceu com Tauat dos Santos Lara, de 14 anos. Quando estudava na Escola Municipal Minas Gerais, na Urca, Zona Sul do Rio, era sempre o primeiro a terminar os exercícios.

"Um dia, a professora de Matemática me indicou livros mais avançados. E até sugeriu que eu pulasse de série", recorda Tauat. Hoje aluno do 9º ano do Colégio Pedro 2º, Tauat é tricampeão nas Olimpíadas de Matemática das escolas públicas.

Em casa ou no colégio, os sinais são sempre os mesmos. "Aprendem com rapidez, gostam de fazer perguntas, têm excelente memória, apresentam rico vocabulário e tiram notas boas", enumera a psicóloga Cristina Delou, doutora em Educação pela PUC-SP e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Desde 2014, Delou já capacitou 200 professores da rede pública do Rio de Janeiro para reconhecer superdotados.

Os alunos que se destacam dos demais, por terem pensamento lógico, facilidade de aprendizado ou senso de justiça, entre outros atributos, são avaliados por um psicólogo ou um psicopedagogo, através de testes específicos de conhecimento.

Feito o diagnóstico, o estudante é encaminhado a um instituto especializado para aprimorar seu talento.

"Os mitos relacionados à superdotação são incontáveis: uns dizem que eles são gênios, outros, que são bons em tudo e outros, ainda, que não precisam de ajuda. Sem orientação adequada, muitos deles perdem o interesse nos estudos e abandonam a escola", explica Inês França, gerente de projetos do instituto Ismart, que atua auxiliando superdotados do Rio.

Bullying

Segundo o Censo Escolar de 2014, o Brasil tem hoje 13.308 alunos superdotados na Educação Básica - um número 17 vezes maior que o registrado em 2000. Mas, pelos cálculos da OMS, esse número pode chegar a 2,4 milhões de estudantes.

Desses 13 mil alunos, pelo menos 12, do 1º ao 9º ano, estudam na Escola Municipal José de Alencar, na Zona Sul do Rio. Na chamada sala de recursos, os estudantes com altas habilidades não aprendem regras gramaticais, fatos históricos ou equações matemáticas. Lá, eles são orientados a desenvolver as habilidades que fazem deles alunos superdotados.

Enquanto João mostra a música nova que tirou no violino, Shaft Novakoski Gutemberg, de 13 anos, e Francisco Gomes de Castro, de 10 anos, se enfrentam no xadrez.

"Mais do que transmitir conhecimento, quero prepará-los para a vida. São eles que, no futuro, vão ajudar a resolver os problemas do Brasil e do mundo", acredita a psicóloga Cláudia Feijó, que trabalha há 25 anos com superdotados, sendo 15 na José de Alencar.

Um dos desafios a serem enfrentados hoje pelos superdotados é o bullying. Por serem diferentes dos demais, costumam ser alvo da implicância dos colegas.

"Em alguns casos, alunos com altas habilidades chegam a esconder seu talento para não serem hostilizados dentro e fora de sala de aula", denuncia Susana Pérez, presidente do Conselho Brasileiro para Superdotação (ConBraSD).

Mãe de superdotados

Não por acaso, a advogada Cláudia Hakim, 41, prefere manter em sigilo a identidade dos filhos: de 12 e 15 anos. A mais velha começou a falar quando tinha um ano, aprendeu a ler por volta dos três e já estava alfabetizada aos quatro.

"Enquanto os demais alunos estavam começando a aprender o alfabeto, minha filha já escrevia uma pequena redação, sem erros de ortografia", orgulha-se Hakim.

No Ensino Fundamental, os dois tiveram que ser "acelerados" de turma: a primogênita pulou do primeiro para o terceiro ano e o caçula do pré para o segundo ano.

Hoje, a menina é aluna do segundo ano do Ensino Médio e o garoto estuda no oitavo ano do Fundamental. Hakim, por sua vez, formou-se em Direito Educacional, criou o blog Mãe de Crianças Superdotadas em 2010 e lançou o livroSuperdotação e Dupla Excepcionalidade em 2016.

Para os pais que desconfiam da inteligência acima da média dos filhos, Hakim dá uma dica: procure estimular essas habilidades de forma lúdica e na medida do interesse deles, sem forçar a barra.

"A superdotação é apenas um aspecto do comportamento de seu filho e não é o único. Por essa razão, é importante respeitar as fases do desenvolvimento da criança, deixá-la vivenciar sua infância e lembrar que, antes de ser superdotada, ela é uma criança e precisa ser tratada como tal", recomenda.