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Investir em educação "fecha" prisões, diz especialista francesa

Parentes de detentos do Compaj, em Manaus, se desesperam em busca de notícias após massacre; para socióloga, sociedade não tem empatia pela população carcerária - Bruno Kelly/Reuters
Parentes de detentos do Compaj, em Manaus, se desesperam em busca de notícias após massacre; para socióloga, sociedade não tem empatia pela população carcerária Imagem: Bruno Kelly/Reuters

Daniela Fernandes

De Paris para a BBC News Brasil

29/05/2019 12h27

O massacre nos presídios de Manaus, que resultou na morte de 55 detentos em dois dias, é o mais recente exemplo da crise no sistema prisional brasileiro.

Para Clara Grisot, cofundadora da associação francesa Prison Insider, que coleta informações sobre as condições das prisões no mundo, "o que acontece dentro das prisões de países onde há muita violência, como o Brasil, é a exacerbação do que ocorre nas ruas".

Segundo ela, isso explica a violência que surge regularmente no sistema carcerário do país e também o olhar da sociedade, que inclui o desdém para uma parte dos brasileiros, em relação a massacres como o de Manaus.

"Já é tão violento fora que o que acontece dentro das prisões é praticamente algo que não diz respeito à população", diz ela, formada em ciências políticas e sociologia. Já a real falta de empatia em relação aos presos é algo que ocorre no mundo todo, acrescenta.

Grisot ressalta que o Brasil é um país que cada vez mais coloca pessoas na cadeia. Leis mais duras sobre drogas contribuíram para aumentar o encarceramento. "O Brasil não esperou o presidente Jair Bolsonaro para prender em grande escala."

Na sua opinião, penas mais severas não reduzem a possibilidade de as pessoas cometerem crimes. Investir em presídios em detrimento da educação, diz ela, "é uma escolha infeliz porque apostar na educação significa fechar prisões".

Leia a seguir, os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil - O massacre nos presídios em Manaus choca o mundo, mas é visto com desdém por parte dos brasileiros. Pesquisas no Brasil indicam que a maioria concorda com a afirmação de que "bandido bom é bandido morto." Qual seria a reação na França e em outros países desenvolvidos?

A socióloga francesa Claire Grisot, da associação Prison Insider - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A socióloga francesa Claire Grisot, da associação Prison Insider
Imagem: Arquivo pessoal
Clara Grisot - Vemos que a sociedade tem uma real falta de empatia em relação às pessoas encarceradas. A passagem pela prisão aniquila o interesse que as pessoas podem ter pelo respeito de direitos fundamentais, pela manutenção de laços familiares e saúde dos detentos. A privação de liberdade parece não ser suficiente, é preciso acrescentar condições deploráveis de detenção, sofrimentos físicos, enquanto não é esse o objetivo da prisão. Ouvimos esse tipo de discurso, não é algo específico do Brasil. É uma visão comum no mundo. O tratamento dado aos presidiários não interessa a quase ninguém, mas constatamos que isso é ainda mais forte nos países com grandes desigualdades sociais.

BBC News Brasil - É isso que explica as reações no Brasil a massacres desse tipo?

Grisot - Sim, as desigualdades sociais e o contexto econômico e político no país. Mas de qualquer forma, a passagem pela prisão nunca foi um fator de boa integração ou reputação, ela estigmatiza a pessoa que foi presa.

BBC News Brasil - De que forma a violência no Brasil, que afeta a população diariamente, influencia o olhar dos brasileiros sobre a situação nos presídios?

Grisot - Nas sociedades onde há forte violência, espera-se que os presídios sejam ainda mais violentos. É algo que vemos particularmente no Brasil. O que acontece dentro das prisões em países com muita violência é a exacerbação do que acontece nas ruas. Isso explica a violência que surge regularmente no sistema carcerário brasileiro e, certamente, o olhar dos brasileiros sobre a situação do sistema prisional do país. Já é tão violento fora (nas ruas) que o que acontece dentro das prisões é praticamente algo que não lhes diz respeito.

BBC News Brasil - Como você vê a condição das prisões no Brasil comparada a de outros países? Na França, há também inúmeros problemas, como superlotação, insalubridade e suicídios, condenados pela Corte Europeia de Direitos Humanos.

Grisot - Há quase 11 milhões de pessoas presas no mundo, com realidades que são muito diferentes de um continente a outro, de um país a outro e, às vezes, no próprio país. O Brasil é um país que cada vez mais encarcera. A taxa de aprisionamento vem aumentando constantemente no país há cerca de 15 anos: ela é de 337 para cada 100 mil habitantes. Na França, ela é de 104. Nos países nórdicos, esse índice é de cerca de 60, na Índia é 33 e, nos Estados Unidos, é de 693 para cada 100 mil habitantes. A metade dos presidiários do mundo todo se situa em quatro países: Estados Unidos, China, Brasil e Rússia. O Brasil ultrapassou a Rússia há dois anos e agora tem a terceira maior população carcerária mundial (cerca de 720 mil presos). O Brasil não esperou o presidente Jair Bolsonaro para prender em larga escala.

BBC News Brasil - Esse crescimento do número de presos no Brasil é decorrente do aumento da violência? Em 2017, houve 63,8 mil homicídios no país, um recorde. No ano passado foram mais de 50 mil assassinatos.

Grisot - De maneira geral, e o Brasil não é uma exceção nisso, não observamos uma ligação direta entre o aumento do número de presos e a alta da criminalidade. Vemos que há delitos que passaram a ser passíveis de pena de prisão, o que não era o caso antes. Constatamos, por exemplo, leis cada vez mais repressivas contra a posse e o uso de drogas, como no sudeste asiático, No Brasil, há um aumento real no número de mulheres presas, como também na América Latina, onde há leis mais duras sobre o transporte e uso de drogas, com impacto sobre as mulheres. Elas encontraram nesse mercado ilegal uma maneira de subsistência em meio a crises econômicas e são presas porque são pobres. Na França, no caso de pequenos delitos, aplicam-se às vezes penas curtas de prisão, que dessocializam e destroem a pessoa e, sobretudo, não a preparam para o retorno à vida real. A prisão acaba sendo um recurso cada vez mais utilizado e isso em todos os lugares.

BBC News Brasil - No Brasil e em outros países, prevalece a visão de que penas mais severas reduziriam os riscos da pessoa cometer um crime. Você concorda com isso?

Grisot - Com base nas informações que pudemos obter em todos os países do mundo, percebemos que a prisão não funciona. Quanto mais as penas forem longas e os prisioneiros forem tratados como um nada, menos preparamos seu retorno à sociedade. A prisão destrói.As pessoas que dizem estar ao lado das vítimas vão pedir penas cada vez mais duras, declarando que é preciso deixar de ser excessivamente tolerante. Mas na realidade estudos mostram que quanto menos a pessoa ficar presa, menos ela ficará dessocializada e menores serão as chances de reincidência. Se ela não voltar a praticar um delito, não haverá novas vítimas. Todo esse discurso de repressão produz efeitos contrários ao desejado. É paradoxal. Se as pessoas realmente estivessem ao lado das vítimas, elas seriam favoráveis a penas alternativas. Mas é um discurso inaudível politicamente.

BBC News Brasil - A lei brasileira, como a francesa, prevê penas alternativas (restritivas de direitos) no caso de crimes não violentos ou com graves ameaças. É uma forma de lutar contra a superpopulação prisional. Isso funciona na França?

Grisot - Elas são pouco utilizadas e, sobretudo, não são automáticas. A pena tem de ter um acompanhamento e há um deficit importante de pessoal para realizar esse trabalho de penas alternativas. A situação das prisões francesas é realmente problemática. Elas estão superlotadas. Em uma delas, foi noticiado recentemente que há 18 detentos em 13 metros quadrados. A França tem poucas lições para dar sobre o respeito aos direitos dos detentos. Há um número suficiente de prisões no país, não é preciso construir outras. Mas há pessoas que não deveriam estar lá.

BBC News Brasil - Muitos no Brasil acham que um país sem recursos suficientes para a educação não deveria investir em presídios. Qual é a sua avaliação?

Grisot - A corrida para o aprisionamento e a construção de prisões tem um custo extremamente alto tanto economicamente quanto socialmente. O Brasil dá continuidade a uma política repressiva que fracassou, sobretudo nos Estados Unidos, onde certos Estados gastam mais com prisões do que com universidades. Isso tem efeitos devastadores, com consequências sobre comunidades e gerações inteiras. Alguns têm recuado em razão dos estragos constatados. A educação é uma das primeiras muralhas contra a pobreza. São os pobres que são presos em massa e isso em todos os lugares. Construir presídios em detrimento da educação é uma escolha infeliz porque apostar na educação significa fechar prisões. Isso necessitaria de uma verdadeira guinada política.

BBC News Brasil - No Brasil, difundiu-se a ideia de que os direitos humanos são os "direitos dos manos", dos bandidos. O que explica isso?

Grisot - Isso faz parte de uma retórica clássica que chamamos de populismo penal que quer dividir os direitos humanos. Nós dizemos que os direitos humanos são indivisíveis e não podem ser negociados. Todos devem ser tratados com dignidade. Seria um grande retrocesso pensar o contrário.

BBC News Brasil - O escritor francês Albert Camus disse que "só é possível julgar o grau de civilização de uma nação visitando suas prisões". Nessa lógica, existem países altamente civilizados?

Grisot - Constatamos no nosso trabalho que não existem boas prisões e que a privação de liberdade danifica a pessoa. Claro que as condições de detenção não são equivalentes de um país a outro, nem mesmo de uma prisão a outra no mesmo país. As diferenças são imensas. Em alguns países, há problemas de insalubridade, higiene, pessoas que não têm comida suficiente. Ouvi o relato de um detento de uma prisão em Campinas (SP), que só tinha acesso à água duas vezes por dia, em uma prisão superlotada, com só um ponto de água e filas intermináveis para beber.

BBC News Brasil - Por que os presídios são uma área de especial atenção para os ativistas de direitos humanos?

Grisot - As prisões, mas principalmente outros locais de privação de liberdade, como delegacias, quando as pessoas ficam detidas para uma investigação judicial, ou centros de retenção administrativa (para onde são enviados imigrantes em situação irregular) recebem uma atenção particular por parte de um certo número de organizações na área, locais e internacionais, como a associação para a prevenção da tortura, com sede na Suíça. Há Mecanismos Nacionais de Prevenção que se voltam para isso. Esse órgão existe no Brasil.

BBC News Brasil - Muitas pessoas questionam porque as associações de direitos humanos não focam suas ações nas crianças que vivem nas ruas ou na falta de direitos básicos, como moradia. É errada a conclusão de alguns de que os ativistas na área dedicam muitos esforços à questão das cadeias, em detrimento de outros temas?

Grisot - A associação Prison Insider se dedica à questão das prisões no mundo. Efetivamente, nós poderíamos nos interessar pela reinserção social após a saída da prisão e pela prevenção. Mas há inúmeras outras organizações que se dedicam ao que ocorre antes e depois de alguém ser preso.Como disse, os direitos humanos são indivisíveis e não deixamos de defender isso quando uma pessoa entra na prisão. Há inúmeras outras coisas que podem ser feitas em relação à prevenção, ajudar as pessoas a sair da pobreza, cuidar das crianças nas ruas, preparar a ressocialização de detentos que saem da prisão. Os combates são múltiplos e a ideia é como podemos trabalhar juntos.

BBC News Brasil - As condições dos detentos no Brasil podem se agravar no governo Bolsonaro, que defende o fim da progressão de pena e das saídas temporárias? A violência tende a aumentar?

Grisot - A partir do momento em que temos um discurso repressivo, punitivo, voltado para o endurecimento das condições de encarceramento e o aumento das prisões, não vejo como a situação pode melhorar para os presidiários brasileiros.