Em cidade castigada por pandemia, escola acha novas formas de alfabetizar
Quando o coronavírus se alastrou com virulência por Manaus, colapsando os sistemas de saúde e funerário logo nos primeiros meses da pandemia, as famílias de Maricleia Silva e Ketia Fontaine Romain não ficaram ilesas.
Maricleia, que cozinha marmitas para vender na vizinhança, viu sua rotina virar quando a filha Alice não pôde mais frequentar a escola, onde ficava em tempo integral. A família ainda sofreu uma perda difícil: pouco depois de a mãe de Maricleia se recuperar de uma internação por covid-19, o pai dela morreu em decorrência da doença.
"A cada dia, a gente tinha medo de receber uma notícia ruim", lembra Maricleia.
Ketia, uma imigrante venezuelana há quatro anos no Brasil, conta, com alívio, que ninguém na família adoeceu pelo novo coronavírus. Mas recorda também a insegurança quando precisou recorrer a doações de cestas básicas e ao auxílio emergencial do governo para fechar as contas e alimentar os quatro filhos.
Mesmo com as turbulências, Maricleia e Ketia comemoram uma conquista não trivial em 2020: suas filhas Alice e Andrea, ambas de 7 anos, concluíram o primeiro ano de ensino básico plenamente alfabetizadas - conseguem ler e escrever mesmo tendo tido apenas um mês de aulas presenciais, entre fevereiro e março.
Quem garantiu esse aprendizado em um ano tão desafiador foi uma escola também abalada por suas próprias dores em meio à pandemia.
"Tivemos muitas perdas de vidas (por covid-19) nas famílias dos funcionários e das crianças. Só a nossa pedagoga perdeu quatro pessoas próximas. Foi um momento de medo, ansiedade e desespero", conta Lúcia Santos, diretora da escola municipal Waldir Garcia, que abriga 227 crianças no ensino fundamental 1 (1ª à 5ª série) na capital amazonense.
E, a despeito disso, Santos afirma que 2020 foi "tudo menos um ano perdido" para a escola. "Pelo contrário, estamos mais próximos das famílias. Tivemos muitos ganhos."
Em meio a tanta desolação e incerteza rondando a educação, a Waldir Garcia é um retrato do empenho de tantas escolas pelo Brasil em manter seus estudantes engajados e aprendendo, mesmo com os enormes obstáculos do ensino à distância e dos problemas de conectividade e desigualdade.
'A gente achava que conhecia nossos alunos'
Os primeiros meses do novo coronavírus deixaram marcas profundas em Manaus. Em abril, a capital amazonense chegou a registrar mais de cem enterros por dia. Em todo o Amazonas, a taxa de letalidade pela doença passava dos 8% - em comparação, a média geral no Brasil é hoje de cerca de 2,6%.
Logo no início, a suspensão das aulas presenciais foi amenizada quando as redes municipal de Manaus e estadual do Amazonas passaram a transmitir aulas pela TV aberta.
Mas foi nesse momento que a equipe da Waldir Garcia descobriu que a vulnerabilidade social de parte de suas crianças era maior do que se imaginava.
"Nas casas de 27 alunos não havia nem televisão, nem celular nem internet, e eles estavam passando fome", conta Santos.
"Algo que era invisível se tornou visível. Até então, a gente achava que conhecia os alunos. Eles faziam três refeições por dia na nossa escola. (Com a pandemia), muitos pais ficaram sem emprego, sem ter o que comer e sem ter onde deixar os filhos. (...) Vimos que o mais importante naquele momento não era o conteúdo, mas saciar a fome e manter o vínculo com a escola."
Por intermédio de uma plataforma de financiamento coletivo, a escola conseguiu arrecadar mais de R$ 8 mil para financiar cestas básicas às famílias que precisavam.
A de Ketia foi uma das beneficiadas. "Foi difícil, porque em casa o único que trabalha é meu marido. A cesta chegou quando não havia nada em casa. Com isso, graças a Deus não nos faltou (comida)."
Outras famílias também receberam doações de aparelhos de TV e celulares para acompanhar as aulas.
"Em maio, quando conseguimos ter todas as crianças conectadas, começamos nosso trabalho de ensino", conta a diretora Lúcia Santos.
Brasileiros, venezuelanos e haitianos
A Waldir Garcia já era tida como escola de referência no Amazonas. Localizada em uma área vulnerável de Manaus, abriga crianças de diferentes classes sociais e origens, incluindo 50 estrangeiras, em sua maioria filhas de imigrantes venezuelanos e haitianos - as professoras, inclusive, estudam espanhol para se comunicar melhor com elas.
A escola também é parte do programa Escolas Transformadoras, que promove competências como empatia, trabalho em equipe e criatividade em comunidades escolares de 25 países. Neste ano, Lúcia Santos havia sido uma das vencedoras do Prêmio Educador Nota 10, em reconhecimento pelos projetos de protagonismo juvenil adotados em sala de aula.
E dados do exame oficial Prova Brasil 2017 apontam resultados acima da média nacional: 85% dos alunos da Waldir Garcia concluíram o quinto ano com conhecimentos adequados em português (contra 56% no Brasil) e 85% em matemática (no Brasil, esse índice é de 44%).
Mesmo assim, o ensino remoto durante a pandemia foi desafiador para educadores, pais e crianças.
Como manter a aprendizagem viva à distância, em um momento tão crítico como o da alfabetização, em que a proximidade entre alunos e professores é tão importante? Como manter o vínculo das crianças com a escola?
"A gente (educadores) antes tinha dificuldade até para usar email", conta Santos. "Mas aprendemos a usar tecnologias das quais agora não vamos mais abrir mão. As professoras criaram um podcast com contação de história para as crianças, descobriram como usar o Google Classroom e fizeram curso para aprender a usar padlet", em referência à ferramenta que permite criar um quadro de atividades entre muitos participantes.
Armadas de máscaras e equipamentos de proteção individual, algumas professoras foram de casa em casa dos alunos para entregar materiais escolares e kits para que as crianças pudessem criar suas próprias hortas em casa - aumentando a oferta de alimentos e de chances de aprendizado.
"A gente aprendeu com eles também: foi bonito ver as famílias plantando, colhendo, se engajando. (Com as visitas e aulas online), conseguimos conhecer a casa de todas as crianças, suas dificuldades, e passamos a respeitar o tempo de cada uma."
Alfabetização
Na outra ponta desse processo estavam os pais - como Maricleia, que se desdobrou para ser ao mesmo tempo "cozinheira, professora e a mãe que leva para brincar".
"Não foi fácil. Às vezes eu pedia socorro. Minha filha se distrai fácil. Acho que toda mãe pensou como é difícil ser professora e cuidar de 22, 23 crianças ao mesmo tempo", conta.
Alice, então com seis anos, já havia tido noções de alfabetização na etapa final da educação infantil, mas, como a maioria das crianças da sua idade, ainda fazia mais rabiscos do que escrita.
Todos os dias, Maricleia recebia por WhatsApp as atividades da escola. Na casa das professoras, cartazes à mão colados na parede apresentavam quais as palavras e sílabas seriam estudadas em cada semana. As mesmas palavras eram usadas pelos professores de artes e esportes em suas atividades.
Os vídeos mostravam às crianças como fazer os movimentos das letras e como os pais poderiam encorajar a leitura.
"Hoje a gente viu o trava-línguas do 'rato roeu a roupa do rei de Roma. Então agora a tia vai mostrar para vocês como é o movimento do 'r' minúsculo, ele começa bem aqui em cima (no papel)", diz a professora em um dos vídeos.
Maricleia respondia com gravações de Alice lendo e escrevendo as primeiras palavras.
"Os pais eram nossos mediadores", prossegue Lúcia Santos. "A gente sabe o quanto foi importante as famílias estarem acompanhando o ensino de perto."
A mesma dinâmica se repetia na casa de Ketia, que, mesmo sem falar português fluente, ajudava nos estudos dos filhos e no processo de alfabetização de Andrea.
"Meus filhos é que me ensinaram português nessas aulas", conta.
Das 40 crianças de primeira série da Waldir Garcia em 2020, Lúcia Santos diz que 37 estão concluindo o ano letivo sabendo ler e escrever, apesar dos percalços.
Em anos normais, Lúcia Santos diz que esse índice seria de 100%. Mas os três alunos que tiveram dificuldades (bem como crianças de outras séries com dificuldades no conteúdo) receberam reforço presencial, com horário marcado, na própria escola, com a ajuda de professores voluntários.
Um estudante novo da quarta série também precisou de ajuda individualizada: "ele era novo na escola e chegou sem saber ler ou mesmo escrever o próprio nome", explica a diretora.
"Conseguimos um aparelho de telefone para mantermos contato direto com ele. Com essa atenção personalizada, essa dedicação exclusiva a ele, vimos que ele não tinha nenhum problema cognitivo ou deficiência. Ele aprendeu a ler e a escrever."
Para ajudar as crianças e famílias a lidar com o isolamento e as perdas, as turmas da quarta série fizeram seu próprio diário da pandemia, inspirado na leitura de "O Diário de Anne Frank", da jovem holandesa que ficou escondida em um sótão para tentar escapar do nazismo.
"Apesar de tudo, tivemos ganhos neste ano", afirma Santos. "A equipe da escola se uniu e isso nos motivou a continuar (o processo de ensino). Tivemos muitas perdas, que não vão ter volta. Agora, temos de nos ajudar a superar. Nisso, aprendemos a ser mais flexíveis e fazer da escola um espaço humanizador: desburocratizar as relações e olhar para aluno, pai e professor como indivíduos que comem, sofrem, sentem."
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.