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Vida de símbolos

Modelo trans durante desfile da nova coleção de Ronaldo Fraga na 42ª SPFW - Alexandre Schneider/UOL
Modelo trans durante desfile da nova coleção de Ronaldo Fraga na 42ª SPFW Imagem: Alexandre Schneider/UOL
Lucila Cano

31/10/2016 15h14

O estilista afamado levou para a passarela 28 manequins transexuais, em demonstração de protesto contra todos aqueles que não sabem conviver com a diversidade. Ronaldo Fraga foi aplaudido de pé na 42ª edição da SPFW (São Paulo Fashion Week) e sua atitude estampou o noticiário da semana.

A moda é campo fértil para a criação de valores sociais. O papel das famosas “t-shirts” é inegável. Nossas camisetas básicas de todos os dias transformaram-se em anúncios móveis de tudo o que pode ser dito em imagem. Ou seja, tudo!

E assim seguimos vestindo nossas bandeiras, a favor da paz, pela prevenção do câncer de mama, pelo desarmamento, pela adoção de animais abandonados, contra o desmatamento..., mas também por outros motivos. Nem todos “politicamente corretos”, segundo uma daquelas expressões tão passageiras quanto um dia depois do outro.

A roupa que vestimos é um símbolo. Para todos à nossa volta pode significar qualquer coisa. Menos do que somos e mais do que parecemos ser. Seja por convicção, seja por provocação, o vestuário é essencial para a decodificação da sociedade.

Vocabulário

Os símbolos também inspiram o vocabulário. Se o sujeito tem bons modos e se veste com roupas boas, é chamado de “coxinha”. Se resolve deixar o cabelo crescer e usa coque, logo vira “hipster”, só para citar os termos mais em voga. As pessoas são subtraídas de suas ocupações e se tornam celebridades instantâneas. Em pouco tempo estão na televisão e nos sites de fofocas. Concedem entrevistas sobre o penteado, os cuidados com a aparência, a dieta para manter a forma. Nada se pergunta sobre estudo, leitura, projeto de vida, o que pretende fazer em cargo público etc. A realidade parece ser muito enfadonha.

Quem se arrisca a usar um termo menos usual é passível de galhofa. Afinal, para que perdermos tempo com as palavras, se precisamos de tão poucas para viver? De qualquer modo, vale o esforço de muita gente que ainda defende as florestas, as mulheres, as crianças, os idosos e mais um batalhão de excluídos com palavras. Qualquer dia, elas tirarão do limbo aqueles que se recusam a escutar.

De qualquer modo, também vale o esforço daqueles que fazem poesia e, assim como as imagens traduzem mil palavras, com poucas letras expressam mil imagens.

Pobreza

Imagens e palavras talvez sejam as duas manifestações mais simples de nosso processo evolutivo. A música, a dança, gestos, expressões e até produções, como a comida que preparamos, dizem muito do nosso comportamento social. Mas, para onde será que desejamos evoluir?

Toda vez que uma coisa nova mexe conosco, temos a tendência de compará-la a nosso acervo particular: as experiências que vivemos, as heranças familiares, o lugar em que nascemos. Muitas vezes, sem refletir sobre o que somos, o que queremos e o que temos, assumimos o papel de juízes e rotulamos os outros.

Rótulo é bom para informar peso, nutrientes, validade e outros itens importantes para que possamos decidir a compra e o uso de um produto. Quando colados em pessoas, rótulos empobrecem o aprendizado, o diálogo, a reflexão, o respeito aos outros e a nós mesmos.

A sociedade não é estática. Por isso mesmo, ninguém tem o direito de rotular ninguém. Do mesmo modo, ninguém tem o direito de se colocar acima dos demais e impune aos ditames da ética, que a própria sociedade criou para vivermos em harmonia.

Parabéns ao Ronaldo Fraga por sua iniciativa. Esperamos, agora, que longe dos holofotes, os manequins sejam igualmente respeitados pelo que são: seres humanos tocando a vida. Igualzinho a cada um de nós que, antes de seguir este ou aquele, precisamos pensar um pouco mais sobre o caminho que queremos.

* Homenagem a Engel Paschoal (7/11/1945 a 31/3/2010), jornalista e escritor, criador desta coluna.