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História do Brasil

Golpe militar de 1964 (6) - resistência da cultura resultou em amadurecimento artístico

Fernanda Ezabella, da Reuters, em São Paulo

O público atirava tomates e Caetano Veloso vociferava de volta em protesto. Nelson Leirner exibia como arte um porco empalhado. Os atores de José Celso Martinez agrediam seus espectadores e depois eram espancados por um grupo paramilitar. Glauber Rocha incendiava as telas com sua revolução cinematográfica.

Nunca a cultura brasileira foi tão combativa. E nunca o Brasil foi tão sombrio. Começou em março de 1964, há exatos 40 anos. O que restou de todos aqueles sacos de pólvora?

Quando os militares tomaram o poder, os movimentos populares que cresciam desde o final dos anos 1950 foram sendo massacrados. As manifestações artísticas, porém, ainda respiravam, mesmo que sufocadas.

O período mais rico da cultura durante a ditadura ocorreu até 1968, quando o cerco da censura apertou e muitos artistas foram para o exílio.

Nesse período de quatro anos surgiram os maiores festivais de música, talvez o setor mais popular da cultura da época. A competição pelas canções, ora de protesto, ora não, tomava conta das discussões diárias de todas as classes sociais.

Para o crítico de música e historiador Zuza Homem de Mello, o que sobrou daquela época foi o amadurecimento. Além disso, não se pode esquecer que, para o entendimento da obra de grandes músicos brasileiros, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, é preciso voltar ao período.

Os compositores da nova geração também puderam se beneficiar do que aconteceu. "Mesmo que não sejam filhos das gerações de músicos dos anos 1960, você vê que existem compositores novos com uma postura de entendimento político-social", disse Homem de Mello à Reuters.

Alegorias como armas

A novidade hoje, até então inexistente, é o surgimento das grandes instituições, que tomam forma de poderosas gravadoras, museus, estúdios ou editoras.

"Naquela época, as pessoas faziam o que davam na telha. Hoje em dia só fazem o que as gravadoras mandam. Vender bem era uma boa notícia, hoje em dia é uma obrigação", explica o crítico.

"Existe muita gente boa, mas não tem tido espaço (na grande mídia). Eles têm consciência política e social, tanto musical quando vivencial, mas não tem espaço."

As mesmas armas de ontem, como alegorias e metáforas que burlavam a censura, continuam em uso. É o que acontece em parte com artistas plásticos ativos daquela e desta época, como Cildo Meireles, Waltércio Caldas, Nelson Leirner ou Regina Silveira.

Para o curador e professor da Universidade de São Paulo Tadeu Chiarelli, "sem dúvida alguma, as obras desses artistas amadureceram com o passar dos anos e com a superação daquele momento".

"Porém, ainda é visível na produção deles um travo de ironia guerrilheira, de desestruturação de conceitos que guarda ainda uma aderência, muito salutar aliás, com suas propostas dos anos 60 e 70."

Cinema de resistência

No cinema, abordagem semelhante pode ser vista na trajetória de Nelson Pereira dos Santos, 76 anos, um dos fundadores do cinema novo que, apesar do movimento começar antes do regime militar, teve seu ápice neste período.

"Ele é um sobrevivente, continua fiel na linha de sua obra, sempre voltado para o social e superantenado com a modernidade", diz a crítica de cinema Neusa Barbosa.

"Ainda existe uma reflexão política, sim", diz ela, em resposta aos que acreditam na transformação do cinema atual em uma glamourização da miséria do país.

"Como 'O Invasor', por exemplo, que fala claramente sobre a ética no país. Ou o 'Cidade de Deus'. O tema pode ser o mesmo, mas é claro que não é com aquela mesma militância", continua.

Na academia, a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro Ivana Bentes vê uma mudança estética e mercantil para falar da realidade brasileira no cinema.

Ela vê a substituição da "estética da fome" de Glauber Rocha, que buscava mostrar a pobreza nua e crua para chocar, em contraposição à "cosmética da fome" --uma maneira de mostrar a realidade com tintas para agradar o mercado cinematográfico e o grande público--, linhagem da qual "Central do Brasil", de Walter Salles Jr., seria um dos principais expoentes.

Neusa Barbosa aponta também para as mudanças técnicas de som e montagem, além da expansão dos recursos pelo setor publicitário, que deram novas cores a produção cinematográfica. "O Glauber foi um visionário, mas não podemos ser viúvas dele para sempre."

Outra pancada no meio do caminho foi o fim da Embrafilme nos anos 1990, que, embora criticada por alguns, foi responsável pela produção de filmes importantes.

"É surpreendente que o cinema não tenha morrido e de ter essa vitalidade que se vê hoje", diz Neusa.

"Acredito que tenha sido a resistência criada e vivida durante a ditadura que fez com que os cineastas não se entregassem."

No ano passado, foram realizados 40 longas-metragens brasileiros, segundo dados do Ministério da Cultura, contra dois ou três produzidos a cada ano de 1990 a 1994, quando foi criada a Lei de Audiovisual.

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