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Como Paulo Freire revolucionou universidade no Recife usando a comunicação

Paulo Freire criticou socialistas e era contra doutrinação, diz biógrafo - Reprodução
Paulo Freire criticou socialistas e era contra doutrinação, diz biógrafo Imagem: Reprodução

Carlos Madeiro

Colaboração para o UOL, em Maceió

19/09/2021 04h00

Antes de ter seu método de alfabetização de adultos reconhecido no mundo todo, o educador pernambucano Paulo Reglus Neves Freire implantou um modelo de extensão universitária considerado revolucionário, que usava a comunicação (escrita e falada) para levar o conhecimento da academia para o povo.

Tudo começou em 1961, quando Paulo Freire criou e passou a comandar —de forma pioneira no país— o Serviço de Extensão Cultural (SEC) da Universidade do Recife, antigo nome da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Esse era um órgão específico de política de extensão universitária, o embrião do que viriam a ser as pró-reitorias de extensão das universidades.

Paulo Freire em 1963, na UFPE  - Arquivo Nacional - Arquivo Nacional
Paulo Freire em 1963, na UFPE
Imagem: Arquivo Nacional

Uma das preocupações de Freire era levar para a sociedade tudo o que era produzido nas universidades.

"O SEC se organizou em torno de três programas estruturantes: o Método Paulo Freire de educação, a Rádio Universidade (atual Rádio Paulo Freire AM) e a revista Estudos Universitários", afirma Dimas Brasileiro Veras, professor do IFPE (Instituto Federal de Pernambuco) campus Recife e pesquisador da Cátedra Paulo Freire da UFPE.

Dimas conta que o SEC surgiu em uma conjuntura de acirramento da luta política e de resistência aos movimentos antidemocráticos crescentes na véspera do golpe de de 1964. "A revista lançada por Freire deu voz aos debates políticos e culturais dos anos 1960."

Circulação censurada

A revista causou polêmica naquela época. Ela teve sua última edição lançada sob a gestão de Freire no final de 1963, ano anterior ao golpe que instituiu a ditadura militar no Brasil, regime que durou 21 anos (1964-1985). "Os militares, ao tomarem o poder, tiraram Paulo Freire e sua equipe do SEC. [A revista] Era um projeto vinculado a ele, então era visto como um espaço subversivo", conta o pró-reitor de Extensão e Cultura da UFPE, Oussama Naouar.

Freire sempre deixou claro que o maior objetivo da educação era formar o aluno para entender sua realidade social e, com esse conhecimento, levá-lo a agir em favor da própria libertação.

Como a ideia de emancipação irritava os militares, Freire saiu da UFPE, e a revista deixou de circular em 1964 e 1965. Ele foi considerado um traidor da pátria, e chegou a ser preso por 70 dias. "Depois da suspensão das atividades, em 1966, quem assumiu a revista foi o [professor da área de Letras, morto em 2013] César Leal", conta Noauar.

Revista Estudos Universitários homeganeia o centenário de Paulo Freire - Reprodução - Reprodução
Revista Estudos Universitários homeganeia o centenário de Paulo Freire
Imagem: Reprodução

Segundo o pró-reitor, depois da retomada, a revista mantém até hoje a missão pensada por Freire. "Resguardamos esse espírito que procura problemáticas de relevância para a sociedade civil. A gente escolhe sempre temas que conseguem fazer a ponte, trazer um pouco do que se faz na universidade pública para a sociedade", explica.

De lá para cá, entretanto, a revista passou por mudanças na política editorial, tornando-se mais abrangente. "A gente fez uma configuração que tenta fazer esse papel de ser um espaço de diálogo com a sociedade civil. Para isso, foram estabelecidos conselhos científico e editorial pluridisciplinares", afirma Noauar.

Operamos uma grande reestruturação da revista. Ela vinha sendo conduzida mais por educadores da área de Letras, e nós a reinstitucionalizamos dentro da pró-reitoria, que é o lugar onde ela nasceu —antes ela estava na editora UFPE."

Prestígio e perseguição

Entre 1967 e 1980, Paulo Freire viveu no exílio, no Chile, onde concluiu sua obra mais importante: "A pedagogia do oprimido" (1968), livro que é o terceiro mais citado em trabalhos acadêmicos na área de humanidades em todo o mundo.

Por conta de seu talento, ele foi convidado para trabalhar como professor visitante na Universidade Harvard (EUA), em 1969.

O pernambucano se tornou o brasileiro com mais títulos de doutor honoris causa —dado por pelo menos 35 universidades do mundo— e um dos autores mais citados em pesquisas na área de humanas do planeta.

Apesar de todo reconhecimento, em 2019, foi alvo de Bolsonaro e aliados, que chegaram a classificá-lo como "energúmeno" e "comunista" —algo fora da realidade, já que o educador era crítico de regimes socialistas, e jamais defendeu a doutrinação de alunos.

Reconhecimento em sua terra

Na UFPE, o nome de Paulo Freire está em toda parte: ele "batiza" a concha acústica e a rádio universitária, por exemplo. Além disso, o educador foi homenageado com uma estátua ao lado do Colégio de Aplicação.

Estátua de Paulo Freire inaugurada em 2013 dentro da UFPE  - Bernardo Sampaio I Ascom UFPE - Bernardo Sampaio I Ascom UFPE
Estátua de Paulo Freire inaugurada em 2013 dentro da UFPE
Imagem: Bernardo Sampaio I Ascom UFPE

Segundo o professor da UFPE e sócio do Centro Paulo Freire, André Ferreira, a história de sucesso do educador começou no Recife, logo após ele se formar em Direito —profissão que não exerceu.

"Aqui no MCP [Movimento de Cultura Popular] do Recife, ele foi diretor da divisão de pesquisa e, depois, de alfabetização de adultos. Também foi representante de Pernambuco no Congresso Nacional de Educação de Adultos, no final dos anos 1950, e só depois foi o primeiro coordenador do serviço de extensão cultural —e que viria a dar origem à Pró-Reitoria de Extensão", explica.

Foi nesse momento que Freire começou a por em prática o método de alfabetização que o consagrou. "Ele iniciou na UFPE as experiências do método que estava criando, começando em um lugar chamado Centro de Cultura Dona Olegarinha, aqui no [bairro do] Poço da Panela. Dali ele foi chamado para realizar a experiência em Angicos [RN], ficou famoso e foi citado até pelo New York Times", lembra.

A experiência no centro Dona Olegarinha, diz Ferreira, rendeu um adulto alfabetizado, entre os cinco alunos da primeira turma.

Em seguida, em 1963, o modelo foi aplicado a um grupo de 300 trabalhadores dos canaviais em Angicos, situação em que a alfabetização aconteceu em um tempo recorde de 45 dias.

O "MÉTODO PAULO FREIRE" TEM TRÊS ETAPAS:

1) Etapa de Investigação: aluno e professor buscam, no universo vocabular do aluno e da sociedade onde ele vive, as palavras e temas centrais de sua biografia.

2) Etapa de Tematização: aqui eles codificam e decodificam diversos temas, buscando o seu significado social, tomando consciência do mundo vivido.

3) Etapa de Problematização: aluno e professor buscam superar uma primeira visão mágica por uma visão crítica do mundo, partindo para a transformação do contexto vivido.

Fonte: Acervo Paulo Freire

Para Ferreira, o sucesso do método Paulo Freire foi tanto que o faz ser referência até os dias de hoje, no mundo inteiro.

"Ele elaborou sua pedagogia a partir de práticas em situações concretas que persistem no Brasil e na América Latina, mas agora também no chamado 'primeiro mundo', devido à imigração de pessoas não-escolarizadas, realidade decorrente da falência do projeto civilizador capitalista ocidental sobre África e Ásia", diz.

"Além disso, o próprio perigo do retrocesso democrático no mundo atual acende o alerta de que não basta à escola dar apenas instruções e conhecimentos: ela tem que formar para a consciência cidadã e crítica", completa.

Hoje, Paulo Freire completaria cem anos. Ele morreu de ataque cardíaco em 2 de maio de 1997, no Hospital Albert Einstein, em São Paulo.