Como estátua de Paulo Freire criada para o MST foi parar em Cambridge
Um enredo juntou o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), um grupo de estudantes na Inglaterra e um artista plástico de Santana do Parnaíba (SP) e colocou o primeiro busto de um intelectual brasileiro na Universidade Cambridge, quarta mais antiga instituição do mundo, fundada em 1209.
A peça é idêntica a outras estátuas expostas em dezenas de escolas de assentamentos do MST e faz parte das comemorações do centenário do educador brasileiro, nascido em 19 de setembro de 1921, no Recife.
A escultura é feita em graute policromado e pesa 30 kg. Agora, está exposta na Faculdade de Educação da Universidade Cambridge, compondo um acervo de centenas de bustos e estátuas. É, entretanto, a única de um brasileiro.
A instalação do busto de Paulo Freire em Cambridge marca o encerramento de quinze dias de atividades na Faculdade de Educação da instituição britânica em comemoração ao centenário do educador, quando seminários e trabalhos de grupos com centenas de estudiosos —incluindo muitos de toda a América Latina— participaram de eventos online.
Freire, um dos mais citados
Uma análise de trabalhos em ciências sociais feita pelo professor Elliott Green, da LSE (London School of Economics and Political Science), identificou "Pedagogia do Oprimido", de Freire, como o terceiro texto mais citado no mundo nessas áreas —à frente até de obras clássicas, como "O Capital", de Karl Marx.
Em "Pedagogia do Oprimido", Freire defende que a pessoa aprende e se liberta quando recebe um ensino que parte da própria realidade em que vive. Para tanto, o educador precisa descer do pedestal, renunciar a parte do protagonismo e ir além da sala de aula. Uma ideia que não é tão fácil de ser absorvida em instituições tradicionais
Ainda assim, foi acolhido em Cambridge, tendo parte de conteúdos apresentados e discutidos em diversos cursos de ciências sociais da universidade, em especial na Faculdade de Educação.
A instalação do busto de Paulo Freire em Cambridge, segundo a direção da Faculdade de Educação da instituição britânica, "não pretende ser apenas um gesto de solidariedade com os educadores no Brasil, mas de resistência aos ataques à educação do populismo de direita em geral".
A chefe da Faculdade de Educação da University of Cambridge, Susan Robertson, destacou que alguns pesquisadores argumentam que a opressão de educadores em países como Brasil, Hungria e Turquia apresentam um traço comum nos ataques a escolas e universidades, como parte de uma agenda neoconservadora que busca demonizar o pensamento progressista que Paulo Freire personifica.
Essa homenagem não poderia ocorrer em um momento mais oportuno. Estamos em meio a debates urgentes sobre o futuro da educação. Em todo o mundo, comunidades acadêmicas e de pesquisa estão enfrentando desafios à sua liberdade que nunca pensaram que teriam que defender. Tudo o que Freire falou e suas ideias sobre viver, amar, tentar saber, ser tolerante e ser curioso são recursos que nos permitem enfrentar esses desafios."
Susan Robertson, chefe da Faculdade de Educação da Universidade Cambridge
O encontro
Foi em um seminário virtual em maio, durante a pandemia, que Alexandre da Trindade, presidente da sociedade de estudantes brasileiros de Cambridge --a Cambridge University Brazilian Society (Cubs)--, conheceu Rosana Fernandes, coordenadora político-pedagógica da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF).
Ela contou aos brasileiros de lá que o MST havia encomendado bustos para "marcar território" com a figura do educador em alguns centros de ensino e formação dentre as 1.800 escolas que funcionam atualmente nos assentamentos de trabalhadores sem-terra, onde vivem 350 mil famílias em 24 estados do país.
Das 28 esculturas encomendadas pelo MST, uma já tinha sido entregue no assentamento Conquista da Fronteira, em Hulha Negra, no Rio Grande do Sul, no dia 26 de maio.
A escolha do local e o mês tinham um motivo: aquele havia sido o primeiro assentamento visitado por Paulo Freire, em 25 de maio de 1991.
Rosana também tem uma história na educação pública. É uma dos nove filhos de um casal de agricultores nordestinos que migraram ao Centro-Oeste. De licenciada em pedagogia pela Universidade do Estado de Mato Grosso, se tornou especialista em educação do campo e desenvolvimento pela UnB (Universidade de Brasília), mestra em desenvolvimento territorial na América Latina e Caribe pela Unesp (Universidade Estadual Paulista) e doutoranda em educação da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Segundo ela, Freire é um dos principais teóricos e uma grande referência na construção do MST. Daí, a importância de celebrar e marcar o centenário do educador.
Paulo Freire contribui para que os processos de formação de educação possam considerar o sujeito a partir de sua realidade. A prática do projeto da formação da ENFF considera essa relação dialógica, que considera a formação do ser humano baseada nos valores humanistas, da solidariedade, do companheirismo."
Rosana Fernandes, coordenadora político-pedagógica da ENFF
No movimento, as comemorações ao educador ocorrem por 12 meses, desde maio, reunidas na programação Jornada Nacional Viva Paulo Freire - O Educador do Povo. A agenda, ainda em andamento, tem estudos com crianças e adolescentes e cursos de formação de professores.
Na Inglaterra, também houve celebrações a Paulo Freire, em uma série de eventos.
A academia está sob ataque no Brasil. Então o fato de uma universidade reconhecida internacionalmente adotar a imagem de Paulo Freire é um importante sinal de solidariedade aos brasileiros e que representa o compartilhamento de crenças no papel emancipatório da educação e da pedagogia crítica."
Alexandre da Trindade, Cambridge University Brazilian Society
Quem é o escultor?
Os bustos foram encomendados ao artista plástico Murilo Sá Toledo.
O MST conheceu Toledo, em 2011, depois que o artista entregou o Monumento ao Trabalhador do Asseio, Conservação e Limpeza Urbana, que fica na praça Marechal Deodoro, em São Paulo.
A obra faz homenagem a trabalhadores urbanos e retrata um gari, uma copeira, um jardineiro e uma faxineira, alguns dos brasileiros que mais carecem do acesso à formação como foi defendida por Paulo Freire.
Ele conta que a inspiração para a encomenda do MST partiu da personalidade do educador: "Uma pessoa delicada, suave, mas firme e constante, que sempre teve a esperança e a confiança de poder lutar contra a alienação".
Defensor da educação popular
Despachado do Brasil em 21 de setembro, o busto de Paulo Freire desembarcou em Cambridge em 6 de outubro.
Foi apresentado ao público da universidade no dia 4 de novembro, mesma data em que foi realizado o seminário "Por que o espectro de Paulo Freire está assustando a direita brasileira?", dentro da programação dos eventos que celebraram Paulo Freire na universidade britânica.
O texto que acompanha o busto na universidade, palco de 812 anos de educação, resume assim a biografia do educador:
"Paulo Freire (1921-1997) foi um educador e filósofo brasileiro e principal defensor da Pedagogia Crítica e da Educação Popular. Sua obra mais conhecida —o livro "Pedagogia do Oprimido"— é um dos textos fundamentais do campo da Pedagogia Crítica, que preconiza uma pedagogia baseada em uma nova relação entre professores, alunos e a sociedade. Sua abordagem da educação vincula a identificação de questões sociais relevantes com o desenvolvimento coletivo de ações positivas para a mudança social por meio da educação".
Como diria Freire, se a educação por si só não transforma a sociedade, sem ela também não se muda a sociedade.
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