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Corte de verbas gera risco de UFRJ fechar por acúmulo de lixo, diz reitora

Denise Pires de Carvalho é a primeira reitora mulher da Universidade Federal do Rio de Janeiro - Artur Moes/Divulgação
Denise Pires de Carvalho é a primeira reitora mulher da Universidade Federal do Rio de Janeiro Imagem: Artur Moes/Divulgação

Ana Paula Bimbati

Do UOL, em São Paulo

04/06/2022 04h00

Reitora da primeira universidade do Brasil, a médica e professora Denise Pires de Carvalho tem pensado em todas as formas para que as aulas na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) continuem no formato presencial. Com o bloqueio de verba anunciado pelo governo federal, ela e sua equipe têm revisto contratos e dados para minimizar os efeitos negativos.

"A primeira questão é: não voltaremos ao ensino remoto para fazer economia, porque economizar agora vai custar muito caro para o país. Só vamos parar quando não não tivermos mais limpeza e eu espero que isso não aconteça", diz.

O bloqueio no orçamento de 14,5% foi comunicado na sexta-feira da semana passada, mas ontem (3) o MEC (Ministério da Educação) anunciou o desbloqueio de metade da verba —R$ 1,6 bilhão. Reitores ainda esperam a reversão total do dinheiro.

Em entrevista ao UOL, a reitora comentou os impactos do corte no orçamento, analisou a atuação do governo de Jair Bolsonaro (PL) na área da educação, os desafios da universidade e o aumento da diversidade no ensino superior público.

Abaixo, leia os principais trechos da entrevista:

UOL - Como a senhora analisa mais um bloqueio no orçamento, principalmente em um momento de total retomada das aulas presenciais?

Denise Pires de Carvalho - É muito importante a gente ressaltar que o orçamento discricionário, que é aquele não envolve salário, é um orçamento para pagamento de contas de água, de funcionamento da universidade. Neste orçamento, temos tido cortes sucessivos desde 2015.

Com o aumento do número de estudantes, queríamos estar discutindo ampliação de vagas, por exemplo, mas estamos com dificuldades orçamentárias. A UFRJ já tinha orçamento para funcionar até metade de outubro, ou seja, já íamos ficar descobertos por dois meses. Contratos de limpeza, segurança, fundamentais para o funcionamento, não seriam pagos.

Partindo de um orçamento menor, que não garante o término do ano, o corte de 14,5% significa a possibilidade de pararmos por acúmulo de lixo. Não estou nem falando de acúmulo de mato, que também ficará desassistido.

A cidade universitária precisa de capina, poda. Estamos optando agora por deixar as áreas verdes sem contrato, mas vamos manter as atividades de forma presencial. Tivemos dois anos de ensino remoto e é muito ruim para estudantes e professores. Não se tem ensino de qualidade que não seja presencial, o remoto é apenas complementar.

A primeira questão é: não voltaremos ao ensino remoto para fazer economia, porque economizar agora vai custar muito caro para o país. Só vamos parar quando não não tivermos mais limpeza e eu espero que isso não aconteça.

No ano passado, a UFRJ foi uma das primeiras universidades a dar visibilidade para os problemas no orçamento da rede federal. Como a instituição pretende se posicionar neste ano?

Ficamos sabendo disso [bloqueio] na sexta-feira à tarde, então passamos o fim de semana inteiro estudando, porque sabíamos que seria dramática a situação. Que decisão tomar para não parar? Estamos estudando para não parar. Tenho reunião com o Museu Nacional para não parar as obras. Não é só o funcionamento da universidade que é afetado.

É um equivoco retirar dinheiro do sistema de educação, ciência, tecnologia e inovação, porque é um sistema que gera emprego e renda. É o tipo de economia mal feita, porque o governo dá num bolso e tira do outro. Não adianta uma pessoa receber Auxilio Brasil, se o seu filho vai ficar sem bolsa, sem escola.

Não nos furtaremos de dizer para a sociedade quais os problemas desse corte, porque não é simplesmente dizer que a UFRJ terá menos dinheiro para luz, mas o impacto disso. Estou seguindo também a Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior).

Nos últimos anos, a educação teve novos desafios provocados pela pandemia. Nesse período, o governo de Jair Bolsonaro e o MEC foram criticados, seja pela falta de coordenação nacional, mas também por não priorizar pautas consideradas urgentes. Qual sua análise do atual governo na educação?

A minha avaliação é que há um equívoco profundo na escolha dos ministros e das equipes, porque não se pode tratar as instituições de Estado como se elas fossem instituições de governo. Quando um ministro é escolhido por um grupo político e não pela sua capacidade técnica temos, por exemplo, o Plano Nacional de Educação completamente abandonado.

Esse foi um planejamento feito em 2014, havia um governo naquele momento, mas um planejamento que ultrapassa governos. Não há uma meta nesse plano que eu tenha visto ser seguida. Isso é muito grave e demonstra que esse é um governo que não pretende dar continuidade a projetos de Estado.

Nenhum ministro escolhido foi capaz de colocar o plano nacional em discussão, o governo poderia decidir que a meta A, B ou C seriam privilegiadas, porque não há recursos para todas, mas nem isso foi feito. Continuamos com níveis altos de analfabetismo, cursos que precisam se profissionalizar, um ensino superior que precisa se modernizar.

Em 2016, por exemplo, a gente atingiu a meta de 60 mil mestres por ano. Essa foi a única meta atingida e já perdemos. Cortaram bolsas, não reajustaram o valor e temos uma evasão de cérebros do Brasil. Alunos que conseguem terminar graduação aqui não querem fazer mestrado, porque a bolsa é de um salário mínimo.

Vamos analisar isso no futuro e será um reflexo do atual governo, não tem como descolar. É um governo que estancou as metas de educação para não falar de outras questões.

Recentemente, o Congresso começou a discutir uma proposta que prevê a cobrança de mensalidade nas universidades públicas. O texto foi arquivado pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara. Os desafios que as universidades públicas têm hoje podem ser resolvidos com essa proposta?

Não, porque as nossas universidades são universidades de pesquisa. Uma coisa é você pagar um curso com uma sala de aula que gasta giz e lousa. Isso é um custo. Outra coisa é um aluno que pode escolher entre 1,5 mil laboratórios. Eu fiz medicina na UFRJ e podia estudar no núcleo de computação eletrônica, fazer estágio na engenharia.

Quem paga o funcionamento de 1,5 mil laboratórios? Qual seria a mensalidade adequada? Teria mensalidade para quem faz iniciação científica e quem não faz? Tem estudante que faz sua graduação e termina, mas tem estudante que vive essa vida intensa, de passar em laboratório por laboratório. Quanto custa isso? Vi que uma parte da proposta dizia que apenas quem pode pagaria, mas quem pode? 30% dos nossos alunos vêm de famílias com 1,5 salário mínimo per capita. Quem tem uma renda acima disso pode pagar?

Pelo que tem visto na UFRJ e em outras universidades, estudantes negros, pobres e da periferia têm conseguido acessar mais as universidades públicas?

Com certeza. Na UFRJ, nesses 10 anos da Lei de Cotas vimos que a universidade se coloriu mais. Em cursos de alta procura como Comunicação Social, no Direito, vimos aumentos. Em medicina, vimos pouco, porque havia muita fraude, mas agora fazemos a heteroidentificação (que valida autodeclaração).

É uma falácia dizer que o ensino superior perdeu qualidade com as cotas. Não há diferença se o estudante ingressa pela cota ou não. Eles podem ser tão bem sucedidos como a ampla concorrência. Só precisamos continuar investindo na assistência estudantil, porque capacidade eles têm.

As mulheres são minorias nas reitorias das universidades federais, mas a presença de mulheres é forte na educação básica. Quando os cargos vão subindo, essa presença diminui. Por que isso acontece?

Isso é a sociedade patriarcal. Toda profissão que é menos valorizada, com salários menores, afasta os homens. No Brasil, o professor não é valorizado, com exceções de alguns estados, como o Maranhão. Essa política não existe no Brasil, mas na Finlândia, sim. Lá há muitos professores homens.

A UFRJ, a mais antiga, tem 50% do quadro de docentes, de técnicos, formado por mulheres. Na etnia ainda não temos a distribuição adequada, mas estamos cuidando disso. Sou a primeira mulher reitora, antes de mim as mulheres sequer se candidatavam.

Em 2015, disputei com mais uma mulher, mas antes disso houve apenas uma candidata nos anos 90. A sociedade não confia no trabalho da mulher. Nossa responsabilidade é maior, porque sempre que uma mulher comete equívoco, o que é natural da espécie humana, ela é muito mais agredida.

Espero que no final do meu mandato, a UFRJ tenha subido nos rankings internacionais, porque produzimos muito. O que a gente quer é contribuir para que o Brasil tenha o Prêmio Nobel. Estou trabalhando para isso, mas o governo precisava ajudar um pouquinho.