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Pesquisadora sofreu ataques após estudar cloroquina: 'quis sair do Brasil'

Andréa Stinghen pesquisava sobre os efeitos da cloroquina desde 2016 - Arquivo pessoal
Andréa Stinghen pesquisava sobre os efeitos da cloroquina desde 2016 Imagem: Arquivo pessoal

Do UOL, em São Paulo

20/07/2022 11h00Atualizada em 20/07/2022 16h43

A publicação de uma pesquisa é sempre motivo de comemoração, principalmente no ambiente acadêmico. Já para a pesquisadora Andréa Stinghen resultou em uma série de ataques pessoais contra seu trabalho. Em 2021, no auge da pandemia do coronavírus, ela publicou uma pesquisa sobre os efeitos tóxicos da cloroquina nos vasos sanguíneos.

Na época em que o estudo foi publicado, o presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus apoiadores já defendiam o uso do remédio para tratamento da covid-19 — sem eficácia comprovada. "Considero que foi o pior momento da minha carreira e tenho 30 anos de trajetória acadêmica. Foi o momento que eu me questionei, me deprimi, pensei em largar tudo e ir embora do Brasil", conta a professora, que também é orientadora de mestrado e doutorado na UFPR (Universidade Federal do Paraná).

Andréa diz que sofreu ataques de grupos bolsonaristas e evitou dar entrevista para veículos da imprensa que apoiam Bolsonaro. "Preferi não dar entrevista para Jovem Pan, por exemplo. Não fui impedida de pesquisar sobre esse tema, mas me senti censurada e ameaçada em muitos momentos frente aos ataques que sofria em redes sociais", afirma. "Não via perspectiva para o pesquisador brasileiro."

Interferências, autocensura e censura são os temas de uma pesquisa divulgada hoje (20) pela Frente Parlamentar da Educação, feita em parceria com o Observatório do Conhecimento, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, o Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade e o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo.

Foram ouvidos mais de mil pesquisadores brasileiros. Segundo o levantamento:

  • 58% dos pesquisadores e professores do ensino superior conhecem experiências de pessoas que sofreram limitação ou "interferências indevidas em suas pesquisas ou aulas".
  • 35% dos respondentes já limitaram aspectos das próprias pesquisas.

A proibição de manifestações políticas, religiosas ou filosóficas é uma vedação genérica de conduta que, a pretexto de evitar a doutrinação de alunos, leva a perseguição de educadores e o empobrecimento de debates e construções de pensamentos críticos dentro das universidades."
Mayra Goulart, coordenadora do Observatório

Segundo Andréa, entre os ataques sofridos há frases machistas e que descredibilizam seu trabalho.

Ela estuda os efeitos da cloroquina desde 2016, mas leu comentários como "ela não sabe o que está pesquisando", "esse pessoal da universidade é doido". Andréa define o momento como "terrível" para ciência brasileira.

Perdi até mesmo amigos e familiares que desacreditaram meu trabalho. Pessoas que deveriam dar suporte, mas que compraram o pacote da ignorância."
Andréa Stinghen, pesquisadora

Para o deputado federal Israel Batista (PSB-DF), presidente da Frente da Educação, há uma "nítida impressão" de que "a liberdade acadêmica está em risco sim". "A pesquisa dá luz para isso e vai nos ajudar a buscar soluções para esse problema", afirma.

Segundo Mayra, a pesquisa terá uma segunda etapa de análise qualitativa, em que será possível saber temas citados pelos pesquisadores que foram censurados ou autocensurados dos estudos. "Queremos produzir uma cartilha para definir e orientar os professores sobre como identificar e o que fazer diante de uma situação dessa", explica.

Censura

Um dos casos mais recentes de censura aconteceu com o epidemiologista e ex-reitor da UFPEL (Universidade de Pelotas), Pedro Hallal. Responsável por liderar o estudo Epicovid, ele foi ao Palácio do Planalto para apresentar dados sobre a pandemia, mas 15 minutos antes foi informado que um slide sobre a incidência da covid em indígenas havia sido retirado.

Os números mostravam que as populações indígenas tinham, em média, cinco vezes mais risco de se infectar do que os brancos, enquanto os negros tinham o dobro. Hallal, no entanto, apresentou os números em entrevistas para imprensa.

Depois disso, segundo ele, o governo o escolheu como oponente. "Com isso, uma série de mecanismos de perseguição começaram contra mim", conta. O pesquisador precisou, por exemplo, assinar um termo de ajuste de conduta após ser alvo de uma denúncia da CGU (Controladoria-Geral da União) por ter criticado Bolsonaro.

"Com essa intensificação dos ataques, os pesquisadores acabam repensando suas práticas e possibilidade de ir embora do Brasil. Uma das consequências mais graves dessa postura do governo é a fuga de cérebros", diz o professor. Seus melhores alunos, segundo ele, não têm planos de continuar no Brasil, mas sim terminar seus doutorados em outro país.

Ele relata que sofre ataques no ambiente virtual, mas também no dia a dia, e sempre os encaminha para as autoridades responsáveis. Recentemente, Hallal estava em um shopping e uma pessoa o abordou perguntando porque estava sem máscara. Ele respondeu que não havia necessidade e a partir daí os ataques começaram: "depois você vai para Globo criticar o presidente".

"Poderia ter sido tu. Essa é a frase mais forte e que ouvi nos últimos dias...Quando houve o assassinato [do petista Marcelo Arruda] muita gente disse: 'poderia ser tu'. E de fato poderia ter sido eu", afirma o pesquisador.

Apesar disso, ele destaca que muitas pessoas o param na rua para agradecer pelo trabalho científico. "A ciência salva vidas há muito tempo, e quando é interrompida perde a capacidade de mudar a realidade."

Um país com pesquisadores que se autocensuram ou têm suas opiniões científicas censuradas não avança, não consegue inventar uma vacina contra covid, não consegue encontrar o remédio para curar o câncer. Tudo isso, porque você não tem liberdade para pesquisar."
Pedro Hallal, epidemiologista, professor e ex-reitor da UFPEL

Os pesquisadores responsáveis pelo estudo afirmam também que a censura provoca um "apagamento de ideias" entre os cientistas no país —já que eles tendem a fugir de certos assuntos para evitar problemas.