'Terra sem lei': médicos relatam violência em festas e jogos universitários

Cenas como as que mostram alunos de medicina exibindo as partes íntimas durante um jogo de vôlei feminino expõem a cultura de violência que permeia toda a graduação e, muitas vezes, se transforma em comportamentos agressivos desses profissionais no mercado de trabalho. É o que dizem médicos ouvidos pelo UOL, após a repercussão do caso envolvendo estudantes da Unisa (Universidade Santo Amaro).

O que acontece

Ameaças, xingamentos, racismo e estupros são alguns dos casos vividos por estudantes de medicina. Os episódios ocorrem desde a chegada deles como calouros às faculdades até a trajetória profissional.

"A violência é generalizada", diz André*, médico formado por uma universidade pública de São Paulo. Mulheres e negros, entretanto, são as principais vítimas de uma cultura que se perpetua com mais intensidade desde os anos 1990 — um calouro de medicina foi encontrado morto em uma piscina em 1999.

De lá para cá, estados como São Paulo criaram leis que proíbem trotes. Contudo, a atuação das atléticas e as violações que ocorrem nas festas e jogos universitários ainda são veladas para o restante da sociedade. O caso dos alunos da Unisa ocorreu em abril deste ano, mas só veio a público na última semana — a instituição expulsou parte dos envolvidos.

"No curso de medicina existe uma supervalorização do que chamamos de tradições. Com isso, se perpetuam comportamentos machistas e racistas", afirma Flávia Kuhn, médica fisiatra e professora de Humanização na Saúde e no SUS, na Faculdade de Medicina da USP.

Esses casos são um reflexo de uma sociedade que ri do estupro e da violência. Eles naturalizam uma violência sexual, e isso mostra como a sociedade é marcada pelo gênero, pela raça e classe.
Vanessa Gil, socióloga e doutora em Educação

O aumento de mulheres nos cursos de medicina nas últimas décadas estimulou um crescimento nas denúncias de violações, segundo Flávia. "Mas quem está nas posições de poder ainda são os homens", afirma.

Muitas vezes, a adesão às práticas de violência ocorre pela necessidade de pertencimento. "Na época, eu era uma jovem repetindo aquilo [hino] sem prestar atenção, há um senso de identidade com as atléticas", diz Flávia.

Médicos relatam que a conscientização sobre essa cultura de violência só vem com o internato, estágio obrigatório no curso. "Quando comecei a olhar os pacientes nos olhos, alguns comportamentos se mostraram inadequados", diz Flávia. "Mas, muitas vezes, nem mesmo o contato com outras realidades é suficiente."

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O CFM (Conselho Federal de Medicina) diz ter um código de ética para os estudantes. Ao UOL, o presidente José Hiran Gallo afirma que os episódios podem ser evitados com melhorias no ensino e conteúdos éticos na sala de aula.

Cenas violentas em cursos de medicina causam repulsa e indignação e demonstram a necessidade de as escolas médicas qualificarem o ensino para que, desde o início da formação, futuros médicos saibam como agir de forma ética e responsável.
José Hiran Gallo, presidente do CFM

Jogos universitários registram casos de violência

"Vi uma menina tomando tijolada no rosto, aluno levando garrafada e gente jogando bomba na torcida adversária", conta André. Integrante da atlética, ele participou de competições durante a graduação e diz que os casos de violência são recorrentes.

Os jogos acontecem anualmente e reúnem alunos de diferentes instituições de ensino. André diz que presenciou uma briga entre alunos de duas universidades públicas em São Paulo durante o InterMed, uma das competições mais tradicionais do curso.

Um dos estudantes, segundo o médico, pegou uma chave de roda e fraturou o aluno da outra instituição. "Esse cara se formou, é pediatra e está exercendo a medicina", disse André.

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"Quando você entra na atlética, fica horrorizado, mas depois começa a normalizar um pouco o que acontece. Estava acostumado a ver gente pelada. A violência se confunde com a brincadeira", conta.

Essas competições são uma terra sem lei. Todo mundo sente que a lei não se aplica a esse contexto. Você pode ficar pelado, simular masturbação diante das meninas, provocar e dar um soco na torcida adversária.
André*, médico em São Paulo

"É uma estrutura de exército"

A hierarquia é um dos principais aspectos na cultura de violência. "O veterano manda e você obedece", diz André. Segundo o médico, isso faz com que o comportamento se repita de geração em geração sem questionamentos.

Essa estrutura não se restringe às atléticas, o que dificulta ainda mais as denúncias de casos de violência, segundo a médica psiquiatra Elisa Brietzke, 49. "Você não vai falar do professor, porque ele pode fazer parte da banca de uma residência que você quer tentar", afirma ela, formada em uma universidade pública do Sul.

Você entra calouro. Acima está o veterano, depois a pessoa que está no internato, os residentes e os professores. É uma estrutura de exército, de quem manda em quem, gerando uma cultura de silêncio e medo.
Elisa Brietzke, médica psiquiatra e professora universitária

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"Em momentos de tomada de decisão coletiva, a gente aprendia a não questionar os veteranos." O médico da família e comunidade, Lucas Uback, 29, afirma que as relações de hierarquia também se manifestam de forma velada.

Violência que gera trauma

"É uma violência que não fica tão clara naquele momento, só quando olhamos para o passado enxergamos melhor", declara o médico Uback. Quando calouro, lembra que os estudantes eram coagidos a comprar os "kits" com ingressos para festas no valor de cerca de R$ 400. "Depois da compra, entrávamos na faculdade rastejando porque não éramos dignos de ir caminhando."

Uback diz que foi obrigado a simular um ato sexual em meio aos estudantes. "Essa era a justificativa para que a gente pudesse criar laços", afirma ele, membro da diretoria de comunicação do Simesp (Sindicato dos Médicos de São Paulo).

"Nas chopadas, os veteranos diziam: 'Vocês têm que aguentar até as 6h da manhã. No trabalho, vocês vão ter que ficar acordados a noite inteira'". Segundo Uback, as humilhações sofridas na faculdade se reproduzem nas relações de trabalho. "Tudo é naturalizado."

O trote não é apartado do que existe na sociedade como o racismo, machismo, misoginia e homofobia.
Lucas Uback, médico de família

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Violência de raça e gênero

Os episódios de violência atingem ainda mais os estudantes negros, mulheres e LGBTQIA+, segundo os médicos. Elisa Brietzke conta que a violência começa desde uma fala em que um professor classifica um trabalho bem feito como de um homem até um caso de crime sexual.

Ela conta que encontrou na escada do prédio da faculdade uma mulher desacordada com a calça aberta. Na época, a vítima não quis prestar queixa, segundo Elisa.

Uback relata que presenciou momentos em que veteranos tiveram comportamentos misóginos, homofóbicos e racistas. "No trote, um dos meninos negros teve de descascar uma banana. Eles passavam um palito na boca das meninas e as chamavam de vagabundas."

A sensação é de ter sido marionete para reproduzir algo que não era um desejo meu.
Lucas Uback

A violência verbal surge também nos hinos das atléticas. Quem não sabe cantar ou se nega, na maioria dos casos, é punido ou vive no ostracismo. "As letras são elaboradas pelas atléticas. São hinos machistas, que fazem apologia a símbolos fálicos, que representam força e poder", afirma Uback.

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Como as posições de poder são ocupadas por homens brancos, as "punições são inexistentes ou lenientes", segundo Elisa.

O "pacto" pelo silêncio

Gravações como as que registraram os estudantes da Unisa facilitam a divulgação de violências antes restritas aos espaços acadêmicos. Contudo, a tentativa de silenciar as vítimas persiste.

"Você vê todo mundo participando e compra o discurso de que aquilo é normal", diz Uback. "A gente pensa que não vai conseguir ter acesso aos hospitais porque é comum sermos supervisionados por aqueles que promoveram as violências."

É um comportamento de grupo. Sempre foi assim e nunca gerou repercussão. Demonizar um deles é um pouco cruel, porque, por mais que eles estejam errados, essa é uma questão estrutural. Todas as faculdades precisam criar políticas institucionais para melhorar.
André*

"Não queria mais fazer parte daquilo"

Flávia Kuhn afirma que perceber casos de violência obstétrica fez com que passasse a rechaçar o comportamento dos colegas. "Ver mulheres sofrendo, inseguras durante o parto, e serem tratadas como animais me marcou muito. Vi médicos e médicas rindo e ridicularizando essas mulheres."

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Reformular a disciplina de ética médica, adotar medidas de responsabilização aos envolvidos e aumentar a fiscalização em eventos e jogos universitários são algumas medidas apontadas como necessárias para diminuir os episódios da violência.

O presidente do CFM endossa as ações citadas pelos profissionais. Segundo Gallo, o conselho tem se proposto a discutir práticas para fortalecer a formação dos futuros médicos.

Existe uma cadeia de erros que fica evidente em casos de violência na prática médica. O maior de todos se refere ao profissional diretamente envolvido, mas há toda uma estrutura envolvida que deve ser responsabilizada. Falha-se muito na fiscalização.
Rodrigo Fock, 36, médico geneticista

*Nome foi trocado a pedido do entrevistado

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