'Era criança prodígio e falhei na vida adulta': o lado B dos superdotados
Quando se fala em pessoas superdotadas, com inteligência acima da média, a reação em geral é positiva. Acredita-se, no senso comum, que elas são capazes de resolver os problemas do dia a dia e não vão ter dificuldades em momentos desafiadores, como passar no vestibular, apresentar um trabalho na faculdade e por aí vai.
A realidade daqueles que eram vistos como "crianças prodígio", no entanto, tem dois lados. Pessoas com essa condição, que representam 2% da população mundial, têm habilidades inegáveis, mas estão longe de ter uma vida sem obstáculos.
O UOL ouviu três pessoas com superdotação que, em menor ou maior grau, travam uma batalha diária contra si mesmas.
'Falhei na vida adulta'
Isabela Magioni, de 22 anos, conta que a descoberta da superdotação veio ainda na infância, por causa de um sentimento de inadequação em relação ao modelo escolar.
Para ela, havia uma urgência por parte de seus pais de entender por que a filha, embora se mostrasse muito inteligente e talentosa, não conseguia se comportar como uma aluna comum. Por esse motivo, a família buscou uma neuropsicóloga, que constatou a condição.
"Eu tinha a capacidade de escrever textos e poemas e tirava boas notas. Mas era incapaz de estar dentro da sala de aula, de ficar quieta, de fazer as perguntas na hora certa, de entregar tarefas e também de socializar", conta ela, que vive em Goiatuba (GO).
Na época, eu era muito nova e não entendia o que estava acontecendo. Só assimilei que estavam me avaliando porque eu era inadequada.
Isabela Magioni
Depois que as investigações apontaram para a superdotação, Isabela, ainda muito nova, percebeu que podia fazer o que outras crianças não conseguiam. Por isso, surgiu a expectativa de obter um desempenho sempre melhor que o dos colegas. O sentimento a acompanhou durante toda a vida.
Hoje, Isabela é graduada em história e vem trabalhando em um projeto para dar início ao mestrado, mas diz que a etapa foi concluída com muito custo, com a ajuda de professores que foram compreensivos e estipularam prazos maiores.
Terminei a universidade e entrei em um burnout extremo. Não consegui procurar emprego e tenho muitas dificuldades de estudar, me dá muita crise de ansiedade. Começar as coisas me deixa extremamente paralisada.
Isabela Magioni
A jornada acadêmica é exaustiva, por ela associar seu valor como pessoa ao desempenho no curso. "Eu era uma criança prodígio e falhei na vida adulta", resumiu Isabela em um vídeo sobre o assunto no TikTok.
'Medo de fracassar em tudo'
Ana Carolina Perim, de 26 anos, que vive em Jaú (SP), descobriu a superdotação aos 19, por meio de um teste de QI realizado na faculdade de psicologia. Mas, desde pequena, sabia que era diferente. Aos cinco, aprendeu a ler por conta própria, com a ajuda de uma prima.
"Sempre me destaquei na escola, principalmente em humanas. Gostava de português, história e geografia. Em matemática, tirava 8, e os professores diziam à minha mãe: 'Ela deve buscar o dez, porque tem capacidade para isso'", conta.
Na infância, Carol ouviu de professores que era "fora do comum" e que "iria longe". Ela acredita que esses comentários a colocaram sob pressão, o que contribuiu para o surgimento de questões emocionais profundas e até distúrbios psiquiátricos.
Ela ainda não tem um diagnóstico fechado, mas os médicos falam em transtorno de personalidade borderline ou bipolaridade.
Aprovada para estudar psicologia, ela se viu em um dilema: se impunha uma pressão para obter um desempenho acadêmico excepcional. E, apesar de nunca ter sido reprovada, considerava seu desempenho abaixo do esperado.
Então, no terceiro ano, trancou a faculdade e não voltou mais. Hoje, não tem um trabalho que gere renda e passa o dia cuidando da filha, de um ano e sete meses.
Eu tenho medo de fracassar em tudo. Muitas coisas eu nem começo por medo de falhar. Minha irmã vive me mandando concursos públicos para eu fazer e eu não quero, por medo de não passar.
Ana Carolina Perim
'Poderia ter sido melhor'
Gustavo Batistuzzo, de 40 anos, tem um QI acima da média. Na escola, nunca teve o hábito de estudar e sempre tirou boas notas.
Tinha um desempenho excepcional nas disciplinas pelas quais se interessava, como as de ciências exatas. Além do gosto por números, tinha também um fascínio por música e aprendeu a tocar piano por volta dos três anos.
Ele foi diagnosticado há poucos meses com TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade) —uma pessoa superdotada pode apresentar também TDAH ou autismo, ou as duas condições combinadas— e tudo fez mais sentido.
Era muito complicado lidar com matérias pelas quais eu não tinha interesse. Naquela época, não sabia que tinha TDAH, mas hoje entendo o motivo de isso ter sido tão presente. No meu caso, eu tinha realmente um bloqueio pelas coisas que não me chamavam atenção.
Gustavo Batistuzzo
Gustavo se formou em engenharia na USP e, diferentemente de Carol e Isabela, passou pela faculdade sem grandes conflitos internos. A faculdade foi o único período em que realmente precisou estudar. Apesar disso, não passou noites em claro, como muitos de seus colegas.
No caso de Gustavo, a frustração surgiu só mais tarde, aos 40, quando ele entrou em uma crise de meia idade. Apesar de ter um emprego bom e estável na área de segurança da informação, ele lamenta não ter se esforçado mais. Acredita que poderia ter consolidado uma carreira excepcional ou se tornado um grande pesquisador.
Eu deveria ter sido muito mais esforçado. Mas, mesmo não me esforçando tanto, sempre consegui alcançar meus objetivos, como passar na faculdade e me formar. Isso me colocou em uma zona de conforto.
Gustavo Batistuzzo
"Hoje me sinto medíocre. Tenho um potencial absurdo, mas sinto que não consegui aproveitá-lo."
Apesar da frustração por não ter tido uma carreira brilhante, Gustavo não acredita que tudo esteja perdido. Ele constituiu uma família e é grato pela vida que tem. Hoje, torce para que a filha, também superdotada, e a próxima geração de pessoas com essa condição possam se desenvolver plenamente.
Carol e Isabela também têm seus sonhos. Carol quer voltar para a faculdade e cursar psicologia, filosofia ou ciências sociais. Também pensa em trabalhar, comprar uma casa própria e dar uma vida mais confortável para a filha. Isabela quer ser professora universitária, e passar adiante todo o conhecimento que adquiriu.
O que é superdotação
A superdotação não é um diagnóstico psiquiátrico, mas uma condição neurodivergente, explica o médico psiquiatra Mateus Messinger, especialista em neurodivergentes. A pessoa superdotada apresenta habilidades cognitivas acima da média, alto nível de envolvimento nos assuntos do seu interesse e elevados níveis de criatividade, segundo os trabalhos do psicólogo americano Joseph Renzulli.
Um indivíduo com QI acima de 130 é considerado superdotado, mas um resultado abaixo disso também não descarta a condição.
A capacidade intelectual acima da média não é a única característica dos superdotados. Eles tendem a ser excessivamente autocríticos e questionadores, o que os leva a ter uma sensação de inadequação e não pertencimento.
Pessoas com altas habilidades podem ter grande resiliência frente aos desafios da vida, até mesmo pela maior facilidade com que conseguem pensar em soluções, diz Messinger. Mas tudo vai depender do histórico de cada um e de suas respectivas capacidades de gerir emoções.
É muito comum que o superdotado estabeleça ideais tão altos que, caso ele não tenha tido suporte emocional na infância e não se sinta validado e seguro para expressar suas ideias, isso o faça surtar no meio do caminho.
Mateus Messinger
A identificação precoce da condição é fundamental para o desenvolvimento em todos os aspectos. "Se não há a identificação, a tendência da criança é se forçar a caber dentro de um padrão e perder muito do que ela poderia ter explorado dentro das suas capacidades."
O perfeccionismo excessivo dos superdotados pode levá-los a ter dificuldades para cumprir prazos e terminar o que começam a fazer. Eles também tendem a ter um hiperfoco para coisas que lhes interessam, e dificuldade em se concentrar naquilo que não lhes chama a atenção, diz Messenger.
A pressão para que pessoas com altas habilidades tenham um desempenho escolar, acadêmico ou profissional excepcional não pode ser explicada a partir de um único fator, afirma Carlos Eduardo Fonseca, presidente da Mensa Brasil, associação para superdotados. Além dos altos ideais que estabelecem para si mesmas, outro elemento é a pressão da própria sociedade para que atinjam um patamar acima da média.
Estereótipos retratados na imprensa, nos filmes e nas séries contribuem para a criação de um imaginário coletivo sobre indivíduos superdotados, segundo Fonseca. Um exemplo é a criação de personagens fictícios como Sheldon Cooper, da série americana The Big Bang Theory, ou Lisa Simpson, da série de animação Os Simpsons.
A partir da consolidação desse estereótipo, muitos pais de crianças superdotadas pensam que nunca terão nenhum tipo de dificuldade com os filhos, e não é bem assim. O buraco é um pouco mais embaixo. São crianças com muito potencial, mas isso não garante que terão um desempenho excepcional na vida adulta. É preciso trabalhar as potencialidades delas para que obtenham uma performance proporcional a tudo o que podem oferecer.
Carlos Eduardo Fonseca, presidente da Mensa
Na escola
O MEC estabelece diretrizes aos profissionais da educação para promover a inclusão de crianças superdotadas no meio escolar. A principal orientação é estimulá-las de acordo com suas respectivas áreas de interesse. Ainda assim, não há uma cartilha pronta.
Um dos problemas é que professores têm grande dificuldade para identificar alunos superdotados. No Brasil, de uma população de 203 milhões, apenas 4 mil foram identificados com essa condição pela organização para superdotados Mensa, o que faz do país uma "potência intelectual adormecida". Pela presença de características como o hiperfoco, a superdotação pode ser facilmente confundida com TDAH ou TEA (transtornos do espectro autista).
A falta de políticas públicas voltadas para essa questão é o principal problema identificado por Fonseca. Para ele, as escolas não estão preparadas para acolher crianças superdotadas, uma vez que os professores não são capacitados a estimulá-las adequadamente e nem sequer identificar alunos com essa condição. Ainda assim, defende que crianças superdotadas deveriam ser incluídas em salas de aula comuns e socializadas com os demais alunos.
A pedagoga Ada Cristina Toscanini, uma das fundadoras da Associação Paulista para Altas Habilidades/Superdotação (APAHSD), acredita que a inclusão de alunos com altas habilidades seria viável, mas sob condições: um número de alunos limitado —menos de 20 por sala— e uma linha pedagógica diferente da aplicada hoje nas escolas. Em um cenário ideal, o aluno superdotado não deveria ser obrigado a trabalhar com apostilas ou outras ferramentas formais de ensino que possam limitá-lo, mas ter sua criatividade explorada a partir de outros instrumentos.
É complicado falar em educação inclusiva, porque as necessidades das crianças superdotadas não são atendidas, nem as daquelas com outros tipos de particularidades. O problema fundamental é que os professores não têm formação para lidar com essas demandas. Em uma sala de aula com 20 crianças, se três delas precisam de uma atenção especial, o trabalho do professor torna-se muito difícil.
Ada Cristina Toscanini, pedagoga
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