Os desafios da educação à distância, adotada às pressas na quarentena
"Alunos: 'Tia, mandei uma mensagem no chat'. 'Tia, tem gente com áudio e vídeo ligados'. 'Tia, qual é a página mesmo?'. Um minuto depois. 'Tia, cheguei agora, qual é a página mesmo?'. 'Tia, não vou responder não'. 'Tia, tem de ser o que está escrito aqui embaixo?'. 'Tia, I?m over'.
Tia: Cheguei, gente. Demorou porque não tava conseguindo entrar."
Esses foram os dez primeiros minutos da aula remota de inglês de Vicente, 9, aluno de uma escola particular no Espírito Santo, narrados por seu pai Fabio Malini no Facebook. Sobrariam 15 minutos para fazer a atividade de leitura em si, e outros dez minutos para o encerramento da aula:
"Aluno: Ai, tia, às vezes você está ficando verde no vídeo. A imagem fica estranha.'
Tia: 'Ai, tô virando Hulk. KKKKK Gente, a (aluna). voltou. Você está aí? Vamos corrigir o exercício, então...
Aluno: 'Posso falar no lugar de A., tia?'
Tia: 'Espera aí um pouquinho'.
Aluno: 'Deixa eu, tia.'
Tia: 'Eu, quem?'
Aluno: 'Eu. J'.
Tia: 'Tá bom. Então, o resultado das palavras circuladas é isso. Gente, nossa aula acabou!'"
As circunstâncias um pouco caóticas e improvisadas talvez soem familiares para muitos pais e filhos diante das primeiras tentativas de aulas online de suas escolas. O mesmo vale para professores, muitos dos quais estão pela primeira vez se aventurando no ensino à distância ou online, e conciliando isso com o cuidado de seus próprios filhos em casa.
Não são poucas as famílias do mundo vivendo circunstâncias parecidas em meio à pandemia do novo coronavírus. Segundo a Unesco (braço da ONU para educação), até 25 de março, 165 países haviam fechado suas escolas por causa da pandemia, interrompendo as aulas presenciais de 1,5 bilhão de estudantes e mudando a rotina de 63 milhões de professores de educação básica.
Não há nenhum precedente para isso na história.
No Brasil, as respostas para a situação têm sido diversificadas, a depender de cada rede ou escola. Algumas anteciparam as férias e se preparam para estruturar ensino à distância caso a quarentena se estenda, que é o mais provável; outras já estão, em diferentes graus e com diferentes métodos, produzindo conteúdo e enviando tarefas e aulas para os alunos fazerem de casa.
Na rede pública, Estados e municípios preparam aulas virtuais ou via transmissões de televisão aberta, às vezes complementadas por material enviado às casas dos alunos pelo correio ou transporte escolar. Alguns montam grupos de WhatsApp com alunos e professores, trocando vídeos e áudios com atividades.
Na quinta-feira (16), o governo de São Paulo afirmou que o período letivo para os 3,5 milhões de jovens matriculados na rede estadual paulista recomeça em 27 de abril, com aulas ao vivo e vídeoaulas, mesmo para estudantes que não tenham 4G em casa ou no celular.
Experiência no ensino superior
Até agora o Brasil só tinha a experiência de ensino à distância (ou EaD) na educação superior. E, embora as perspectivas sejam de crescimento nesse setor - no qual predominam as instituições privadas de ensino -, os resultados até agora não são todos satisfatórios.
Segundo o mais recente Censo da Educação Superior, feito pelo Inep (órgão do Ministério da Educação), em 2018, pela primeira vez na história, o número de vagas ofertadas em cursos universitários à distância (7,1 milhões) foi maior do que o número de vagas em cursos presenciais (6,3 milhões).
Mas o que espanta é a ainda baixa quantidade de estudantes que conseguem se formar. Em 2018, o Brasil teve 990 mil formandos universitários no ensino presencial, menos da metade da quantidade (2 milhões) de alunos que se matricularam em universidades presenciais naquele mesmo ano.
No ensino à distância, isso cai para um quinto: houve apenas 274 mil alunos formandos, em comparação com os 1,3 milhão que se matricularam no mesmo ano.
"Muita gente se matricula achando que o curso à distância vai ser mais fácil, porque o professor não vai estar lá todos os dias", diz à BBC News Brasil Fredric Litto, presidente da Associação Brasileira de Educação à Distância (Abed) e professor emérito da USP.
"Quando na verdade é mais difícil, porque depende da motivação e da maturidade do aluno" em se dedicar o suficiente aos estudos sem a presença física dos docentes, agrega.
Do lado das instituições de ensino, o avanço da EaD foi uma forma de ganhar escala e baratear os cursos, deixando-os mais acessíveis a alunos distantes ou de baixa renda. O problema, diz Litto, é que "uma boa porcentagem das escolas fez isso para baratear (o ensino) e ganhar mais dinheiro, demitindo, por exemplo, o corpo docente com doutorado, que é mais caro de manter. É bom fugir desse tipo de instituição, porque ela provavelmente não vai investir no enriquecimento de seus cursos e materiais e não vai além (do básico)."
Dito isso, Litto acha que o momento atual, que força alunos e professores a ficarem em casa, pode oferecer boas oportunidades para enriquecer o ensino básico com ferramentas de qualidade da educação à distância.
'Melhor lugar para criança é na escola'
Mas, antes, como transpor o universo do ensino à distância para a educação básica, período em que a presença física, o relacionamento com colegas e a proximidade com os professores fazem enorme diferença no processo de aprendizagem?
"Naturalmente, o melhor lugar para a criança é na escola. Não vamos agora ter soluções (que seriam ideais) para os tempos normais, mas vamos poder aprender para aperfeiçoar a educação quando voltarmos aos tempos normais", diz à BBC News Brasil Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (Ceipe-FGV), que está assessorando redes estaduais e municipais a se adaptarem às circunstâncias atuais.
Soma-se a isso o fato de que, no Brasil, a qualidade da escola costuma ter o papel de redução - ou, em situações negativas, de aprofundamento - das desigualdades sociais.
Por isso, especialistas em educação temem que estudantes de redes ou escolas menos estruturadas, particularmente em regiões carentes, acabem ficando para trás ou perdendo motivação em estudar e, futuramente, em retomar as aulas presenciais.
"No pior dos cenários, se a escola não tiver estrutura (de criar uma aula online), precisa pelo menos mandar tarefas para o aluno fazer em casa, para não desaquecer o processo de aprendizagem", opina Costin.
"Neste momento, a única certeza é de que temos de fazer algo para que não aumentem as desigualdades educacionais. Porque muitas escolas particulares estão mandando suas atividades, e nelas estão as famílias com mais letramento" - e, portanto, em teoria com mais facilidade em manter os filhos estimulados no processo de aprendizagem.
Incertezas das escolas
Por conta da pandemia, o Ministério da Educação permitiu que as escolas não cumpram os 200 dias letivos previstos em lei, desde que mantenham as 800 horas de aula obrigatórias para a educação básica.
Mas como encaixar as horas em um período letivo menor? Todas as aulas online durante a quarentena contarão como dia letivo? Como exigir o mesmo aprendizado de crianças que tenham diferentes condições (de tablets e acesso à internet a escrivaninhas, por exemplo) dentro de casa? Como avaliar, na volta às aulas, o que foi ensinado virtualmente?
Essas perguntas, por enquanto, permanecem sem uma resposta definitiva. O Conselho Nacional de Educação (CNE, órgão independente ligado ao MEC) está preparando uma resolução com orientações às escolas para lidar com esses desafios.
"A grande dificuldade no Brasil, assim como nos demais países, é a situação imprevisível em uma área que não tem tradicionalmente a cultura do digital, do trabalho remoto ou da educação à distância. Isso é novo e complexo para quem trabalha com educação básica nas escolas públicas e particulares", afirmou Maria Helena Guimarães de Castro, conselheira do CNE, em um seminário virtual realizado em 8 de abril pelo conselho, pela organização Todos Pela Educação e pelo Banco Mundial, para discutir a nova realidade do ensino.
A Unesco, por sua vez, fez um chamado para que instituições educacionais públicas e privadas de todo o mundo sigam uma lista de recomendações em meio à pandemia:
1) preservem empregos e salários dos funcionários, dizendo que "a crise não pode ser um pretexto para baixar os padrões e desmerecer direitos trabalhistas";
2) priorizem a saúde e o bem-estar de professores e alunos, em meio ao estresse e à crescente exposição da população global ao coronavírus;
3) deem voz aos professores no processo de planejamento das respostas educacionais, além de oferecer-lhes treinamento adequado para lidar com as circunstâncias;
4) coloquem a igualdade no centro dos debates. "Soluções tecnológicas que assegurem a continuidade do ensino frequentemente exacerbam as desigualdades", afirma documento da Força-Tarefa Internacional de Professores pela Educação, da Unesco. "Educação à remota e virtual só são eficientes para professores, estudantes e famílias com eletricidade adequada, conexão à internet, computadores e tablets, e espaço físico para trabalhar."
Para alguns dos especialistas ouvidos, diante das deficiências educacionais acumuladas pelo Brasil até mesmo em condições normais e da possibilidade de que não seja possível transmitir todo o conteúdo esperado no modelo virtual, será preciso fazer preparos extras para que a volta às aulas presenciais compense as defasagens.
Isso não significa, porém, que não dê para fazer muito pelos alunos neste momento. A percepção dos educadores ouvidos pela reportagem é de que não apenas é possível ensinar habilidades e conteúdos, como tirar lições que podem melhorar a educação presencial no futuro.
'Não é só transformar a aula presencial em online'
Para Fredric Litto, da Abed, um erro comum é achar que basta gravar a aula do professor e transmiti-la online para fazer os alunos aprenderem.
"O aluno provavelmente vai ouvir dez minutos e desligar. Não dá para repetir (virtualmente) o ambiente da sala de aula presencial. Tem que fazer algo diferente, e esse 'diferente' pode ser enriquecedor e eficaz se for bem feito. O sucesso da aula presencial depende muito da inspiração do professor naquele dia, e a vantagem da boa aula remota é que isso não acontece, se tiver uma equipe por trás, pensando no conteúdo, no audiovisual, na avaliação a ser feita daquilo depois", afirma.
O curioso é que Litto tem ouvido da filha, que mora na região altamente informatizada do Vale do Silício, na Califórnia, que seu neto de 14 anos está enfrentando desafios semelhantes aos de alunos brasileiros neste momento.
"Nem lá eles estavam preparados", relata.
Para as escolas e professores que pela primeira vez estão tendo de trabalhar plenamente em ambientes virtuais, Litto sugere pensar em formas de enriquecer o aprendizado com conteúdos interativos e disponíveis para qualquer um que tenha acesso à internet.
"Um professor pode, por exemplo, propor uma atividade com base em uma visita virtual (dos museus) Louvre e Hermitage. Ou com base em arquivos históricos online, filmes de animação, etc. A vantagem é que um aluno do interior (com conexão à internet) pode ter acesso à equipamentos online da USP, mesmo estando longe."
"O ideal é não só depositar conteúdo e arquivos PDF para as crianças lerem, mas sim estimular pesquisas e pensar em temáticas criativas" para engajar os alunos, sugere Helena Faro, do Instituto Ayrton Senna.
"Uma ideia é estimular as crianças a transformar as situações vividas em casa em histórias em quadrinhos, a partir dos relatos deles próprios. As escolas estão sendo convidadas a pensar em outros tipos de estratégia e projetos que motivem os estudantes a usar o celular para algo além da diversão e das redes sociais", diz ela.
E para as crianças pequenas, ainda incapazes de se concentrar por muito tempo em uma atividade virtual - e para quem o ensino presencial faz uma diferença ainda maior?
"Tenho visto algumas redes fazerem trabalhos colaborativos interessantes nessa fase, por exemplo, mandando um vídeo do professor pedindo aos alunos pequenos que contem o que gostam de comer ou de fazer. Depois o professor junta as respostas e todos conversam a respeito em uma live de Facebook", conta Faro.
Na educação infantil, Claudia Costin diz que alguns professores têm usado grupos de WhatsApp para passar orientações aos pais de como realizar atividades com as crianças e bebês. "Depois, uma vez por semana esse professor manda um vídeo individualizado para cada aluno, para manter o contato afetivo entre eles."
Ir além de conteúdo - e ensinar habilidades
E, se está difícil transpor o ensino de alguns conteúdos para o modelo virtual, o atual momento desafiador - de pandemia e confinamento - pode ajudar a ensinar habilidades importantes às crianças, desde a concentração nos estudos até a autonomia e o hábito de leitura.
Um bom começo, diz Helena Faro, é o letramento emocional, algo que é difícil até mesmo para adultos: aprender a reconhecer e nomear os próprios sentimentos - que, no momento, podem ser tédio, medo e insegurança.
Além disso, "uma habilidade importante atualmente é a de resolução colaborativa de problemas com criatividade. Então as famílias podem envolver as crianças no processo decisório de seu cotidiano, organizando um quadro de tarefas domésticas e estimulando-as a arrumar sua cama e cozinhar", sugere Costin.
"É também o momento de fortalecer o vínculo familiar, contando histórias de família e lendo para as crianças. Sugiro reservar 20 minutos para que cada um leia um livro, todos juntos, e saia das telas, para lembrar que a leitura é um hábito de lazer."
Costin sugere, também, "baixar as expectativas", porque recriar o ambiente de aprendizado da escola em casa vai ser mesmo muito difícil. "O importante é as crianças lembrarem deste período como um de convivência familiar, mais do que um de estresse."
'Não vai ser igual volta das férias'
Isso nos leva aos preparativos para a volta às aulas, período que também desperta preocupação em observadores da educação.
"As crianças não vão voltar às aulas como se tivessem voltado das férias", afirmou no seminário de 8 de abril Priscila Cruz, presidente do Todos Pela Educação. "Muitas vão voltar com marcas do estresse, porque suas famílias terão perdido renda ou terão perdido pessoas queridas durante a pandemia."
Outras crianças talvez desistam da escola, desmotivadas dos estudos ou forçadas a trabalhar para contribuir para o orçamento doméstico. Assim, muitas escolas terão de se organizar para buscar novamente esses alunos e encontrar formas de manter as turmas engajadas nesse intervalo. Até quando, ninguém sabe por enquanto.
Nesse cenário complexo, opinou Cruz, é primordial que "não deixemos que este seja um ano letivo de faz de conta. Porque o prejuízo disso ao país será gigantesco".
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