Escola para travestis na Argentina usa metodologia do brasileiro Paulo Freire
Quando chegou a Buenos Aires aos 15 anos de idade, a travesti Virginia Silveira queria se tornar advogada. Abandonou a família e os estudos na terra natal, Salta (a 1597 quilômetros de Buenos Aires), para realizar, sozinha, o sonho nas elegantes ruas da capital argentina.
A vida que levou, porém, não tinha nenhum charme. Como é comum entre as travestis em diversos países, Virginia recorreu à prostituição para sobreviver na cidade grande. “É uma rotina muito dura para uma adolescente. Mas você se vê sem ter para onde correr”, diz. Como se vestia de menina desde pequena, era vítima de exclusão na escola. Ficava de lado nos trabalhos em grupo e não conseguia ir ao banheiro. “Me aguentava até voltar para casa, porque não me sentia à vontade para ir com os meninos.”
Desde março, Virginia, hoje com 22 anos, está de volta aos estudos. Ela é uma das 35 alunas da escola de travestis Mocha Celis. As aulas não são sobre como usar salto alto ou se maquiar, mas, sim, um supletivo para quem não completou o ensino médio, com aulas de língua, matemática, ciências e outras disciplinas que estariam em qualquer instituição do tipo. Dez alunos são heterossexuais. Em geral, eles são parte de outras minorias excluídas do sistema educacional, como imigrantes.
“A diferença é que agregamos discussões de gêneros aos tópicos das disciplinas”, explica Francisco Quiñones, 27, um dos 25 coordenadores e também professor do curso “Gênero” define a construção social da sexualidade e a maneira como o indivíduo se vê. Virginia, por exemplo, nasceu com o sexo masculino, mas seu gênero é feminino. Isso influencia o aprendizado em áreas como a biologia, em que tradicionalmente só é abordada a divisão sexual entre homens e mulheres. Na Mocha Celis, são discutidas também as razões para a existência de travestis e transexuais – como a questão é vista pela biologia, sociologia e psicologia.
Gestão democrática
O educador brasileiro Paulo Freire é um dos mais citados do mundo. Basicamente, ele preconiza a educação como um processo de transformação social. Diz que é preciso acabar com a relação entre professor mestre-do-conhecimento e aluno folha-de-papel-em-branco (veja mais abaixo).
A Mocha Celis decidiu levar Freire a sério. Organiza as aulas em mesas redondas, ao redor das quais educadores e estudantes debatem as questões lado a lado. As regras são decididas em conjunto, como provam cartazes verdes colados na sala de aula – uma norma é escrita a caneta e, abaixo dela, fica o espaço para manifestações contrárias. Uma delas diz: “não se deve fumar em sala de aula”, e logo alguém protesta: “por que não? E a liberdade de atitude?”.
Chegar a um consenso, no entanto, leva tempo e nem sempre é possível. Na Mocha Celis, além dos heterossexuais e os transexuais masculinos, há também as femininas – meninos que nasceram meninas. Segundo Francisco, não há problemas de relacionamentos entre as partes. “Só precisamos melhorar um pouco a integração entre elas”, diz.
Para Paulo Freire, aluno é sujeito, não espectador
A democracia na escola é um ponto essencial do pensador brasileiro Paulo Freire. Para ele, professores e alunos estão em posições contrárias, mas ao mesmo tempo de igualdade, com uma troca contínua de saberes e conhecimentos. “Ninguém só aprende, ninguém só ensina. Não se diz ao outro a verdade, mas, com ele, partilha-se a busca pelo conhecimento”, diz Agostinho Rosa, presidente do Centro Paulo Freire, no Recife. Para Freire, estudantes não são vazios de conhecimento. São sujeitos com histórias e vivências próprias, que devem ser levadas em consideração a todo o tempo na sala de aula. Muitas vezes, surgem contradições entre os universos que se tornam parte importante do processo de aprendizado. “É pelo reconhecimento da diferença e da pluralidade que Paulo Freire pensa a escola. Discutir com o outro é uma apropriação democrática”, explica Rosa. Por meio da formação de protagonistas sociais, capacitados para adquirir e produzir cultura, a escola pensada por Paulo Freire é capaz de gerar consciência crítica, levar a transformações na sociedade e reverter as relações de exploração.
Este é só o primeiro desafio
Muitas alunas da Mocha Celis vivem da prostituição. Outras são manicures e empregadas domésticas. “Em comum, todas sonham escolher a profissão que desejam – e não serem obrigadas a seguir aquelas que a sociedade impõe”, diz Quiñones.
É o que leva Laura Barrionuevo, 28, a enfrentar três horas de transporte público todos os dias para fazer o supletivo. Ela quer cursar radiologia. “É a melhor oportunidade que tive na vida até agora”, conta à reportagem do UOL, logo após dar entrevista a dois canais locais de TV. Laura trabalha de empregada doméstica e, assim como Virginia, também deixou a escola porque não era aceita pelos demais.
Quiñones é otimista em relação à exclusão no mercado de trabalho. “O Estado está mudando a cabeça, então as empresas também devem seguir”, diz. A briga pela aceitação social da diversidade é parte do currículo. No último dia 09, professores e estudantes uniram-se na Praça do Congresso para pressionar o Senado argentino a aprovar a Lei de Identidade e Gênero, que, entre outras medidas, garante a operação gratuita de mudança de sexo a transexuais. Na mesma data, a lei foi ratificada por unanimidade.
Infraestrutura
Além das questões de ordem nacional, a Mocha Celis precisa enfrentar também problemas como a falta de verba e infraestrutura. Ela é considerada um “bacharelato popular”, um tipo de insituição educacional sem fins lucrativos que recebe apoio financeiro do governo. A condição para o dinheiro chegar, porém, é que pelo menos uma turma esteja formada. “Até lá, estamos fazendo uma vaquinha e colocando do próprio bolso. Temos um gasto mensal de 12 mil pesos (R$ 6 mil)”, afirma Francisco.
Mais histórias
Quem visita Buenos Aires a turismo dificilmente verá locais como a escola. Funciona no quinto andar de um prédio antigo no bairro de Chacarita –sem nada da beleza dos casarões característicos da cidade– e conta com pouco mais que uma pequena lousa manchada, mesas velhas e instalações precárias, que parecem ter sido abandonadas por um longo tempo. Numa cozinha com poucos utensílios, os alunos fazem comida para sustentar os colegas mais pobres. Os ingredientes são comprados em conjunto.
O ambiente parece relembrar a história da própria Mocha Celis, travesti que dá nome ao curso. Após ser levada à prisão diversas vezes, foi morta com três tiros em condições obscuras – ao que tudo indica, vítima da violência policial. Sempre que ia parar na cadeia, Mocha, analfabeta, precisava de ajuda para assinar o próprio nome e ler os termos judiciais.
Na Argentina, apenas 14 % das garotas travestis terminam o ensino fundamental, contra 98 % do resto da população, segundo dados da ALITT (Associação de Luta pela Identidade Travesti e Transgênero). A falta de educação e a vida cheia de riscos abaixa a expectativa de vida para 35 anos, comparável aos países mais pobres do mundo em situação de guerra. Na Argentina, a expectativa média da população geral é de 76 anos. Por isso, os estudantes estão esperançosos. “Minha maior dor era não me sentir útil à sociedade”, diz Virginia. “Aconselho os travestis a sair da prostituição. Assim vão se dar conta de que a vida é bem maior e não vão querer voltar nunca mais ao passado.”
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