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Antipedagogia do esporro

Getty Images
Imagem: Getty Images
Guilherme Perez Cabral

24/04/2017 04h00

O grito da mãe, ao meu lado, atingiu o filho e me atingiu também.

Também grito, sei disso. E me identifico de um modo absolutamente profundo com a feição infantil que sucede ao esporro: o olhar arregalado da criança, a boca entreaberta e a resposta travada no gaguejo. O sinal físico do processo mental, ainda rudimentar, tentando articular a resposta aguardada, até o três, sem que haja recursos para tamanha empreitada.

O “porquê” perguntado, na bronca, espera uma resposta de adulto, que não pode vir, assim, da criança. Infância é a fase da vida em que não detemos a capacidade de fala (e reflexão) dos adultos (pelo menos, dos poucos que superaram a infância e podem falar por si).

Quanto aos esporros tomados ao longo da vida, que não pudemos responder --só arregalar o olho, entreabrir a boca e travar na resposta--, eles aderem à nossa identidade. Tornam-se, então, nosso modelo de humanidade. Mais velhos, repetimos os gritos, talvez, para aliviar o som antigo, o engasgo assustado, que ainda perdura em nosso ouvido e mente.

Por isso, é tão perturbador vitimar alguém, criança ou adulto, com broncas incontidas. Logo caio em mim e me identifico com o outro. A bronca saída com meu berro, atingindo-o, atinge a mim mesmo. Arregalo o olho, entreabro a boca, engasgo. Desmorono. Às vezes, tenho vontade de chorar.

Lembro da história do cinturão, que Graciliano Ramos conta em “Infância”. Li por sugestão do Professor Guilherme de Almeida.

Quando do ocorrido, Graciliano Ramos deveria ter quatro ou cinco anos, por aí. Seu pai acordou de mau-humor e levantou da rede perguntando pelo seu cinturão. “Débil e ignorante”, incapaz de conversa ou defesa, fui encolher-me num canto”. Mas, descoberto, foi arrancado violentamente do esconderijo, pelo pai raivoso, reclamando o cinturão. Onde estava o cinturão? “Eu não sabia, mas era difícil explicar-me: atrapalhava-me, gaguejava, embrutecido, sem atinar com o motivo da raiva. Os modos brutais, coléricos, atavam-me”. Onde estava o cinturão? “Impossível responder. Ainda que tivesse escondido o infame objeto, emudeceria, tão apavorado me achava”.

O escritor fala, então, que situações assim foram as maiores torturas de sua infância e suas consequências o acompanharam para toda a vida: “Onde estava o cinturão? Hoje não posso ouvir uma pessoa falar alto. O coração bate-me forte, desatina, como se fosse parar, a voz emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita coisas adormecidas cá dentro”.

Na antipedagogia do esporro não há espaço para mais nada. Só cabe o adulto raivoso gritando, um cão babando com suas presas de fora, perguntando pelo cinturão ou outro porquê qualquer, e a criança com o olhar arregalado, boca entreaberta, gaguejando, tentando montar a resposta que não virá.

Criança que, depois vira adulto e, à sombra dos esporros recebidos, toma-o como seu modo de vida, seu método antipedagógico, o único que dispõe.