Topo

O que os textos de direitos humanos têm para contar

Thinkstock
Imagem: Thinkstock
Guilherme Perez Cabral

28/08/2017 04h00

Como instrumento de organização e controle de condutas, o direito nos conta muito sobre nosso descontrole, desordem e desrazão. É assim mesmo. Os textos, em geral, dizem mais do que os autores pretenderam dizer. Pois falam também do contexto, do lugar a partir do qual se fala.

Por isso conseguimos acessar (um pouco, pelo menos) a História. Debruçando-se sobre os registros e escritos deixados por quem aqui esteve antes de nós, o historiador faz seu trabalho de investigação. Estabelece o diálogo possível com o passado, através dos sinais que este legou.

Nesse sentido, estudar, por exemplo, a Lei Sálica, consolidada no século IX, permite ir além da lista de crimes e respectivas penas previstas pelos ditos povos bárbaros. Permite vislumbrar um tempo de violência. Afinal, havia até o crime de arrancar mão ou pé. A pena era menor se a mão ficasse pendurada.

Havia muitas formas de roubo --de pote de mel, gado, porco, égua e escravo. Tinha crime de estupro, de morte de jovem em idade fértil e de adultério. Quanto à punição, não era a prisão. Pagava-se em dinheiro, castigos físicos ou com a morte. Muitos crimes, muitas penas. Indícios de que esses eventos aconteciam com alguma frequência.

Pois bem. A segunda metade do século XX é marcada por importantes documentos internacionais que afirmam direitos humanos. De 1948 para cá, afirmamos como fundamentais para todos os seres humanos uma série de direitos, como vida, liberdade, igualdade, integridade pessoal, educação, saúde, etc. Direitos sem os quais uma pessoa não pode viver dignamente.

Tem a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Há pactos internacionais: o de Direitos Civis e Políticos e o de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Tem Convenção para a prevenção e repressão do genocídio, que é definido como o assassinato e outras formas agressões com a intenção de destruir um grupo nacional, étnico ou religioso.

Tem Convenção para a abolição da escravidão. Tem o Estatuto para a proteção do refugiado, a pessoa que, perseguida em razão de sua religião, grupo social ou opinião política, tem de fugir de seu país e para lá não pode voltar.

Existe Tratado para a eliminação de todas as formas de discriminação racional e para a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher. Tem Convenção contra a tortura. Contra o tráfico de pessoas para exploração da prostituição, escravatura, trabalhos forçados e remoção de órgãos. Contra o “desaparecimento forçado”, realizado por agentes do Estado (ou com o apoio do Estado), ocultando-se o paradeiro do sujeito sequestrado.

Tem Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência. Sobre os direitos das crianças. Tem documento complementar restringindo o envolvimento de crianças e jovens em conflitos armados e outro proibindo seu envolvimento em pornografia e prostituição.

São diversos documentos para a proteção e promoção dos direitos humanos. E, como qualquer texto, falam muito mais do que a mensagem oficial. Falam de um contexto sombrio. Gritam, na verdade.

A afirmação e reafirmação, no papel, de direitos e mais direitos, parece mais confissão de culpa do nosso fracasso em efetivá-los. Os textos são sinais que vamos deixando na cena de crime.

Os historiadores do futuro (se não nos exterminarmos logo mais), atuando como polícia científica, terão farto material à disposição. São impressões digitais cuidadosamente deixadas ao lado das marcas de sangue, dos restos de pele e de unha, dos fios de cabelo arrancados, das vísceras e restos de corpos dilacerados, que contam dos crimes ocorridos. Falam da nossa miséria existencial, do profundo e sistemático desrespeito aos direitos mais básicos do ser humano.