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Pode desrespeitar os direitos humanos

Guilherme Perez Cabral

07/11/2017 13h46

O Brasil é um país que ainda tem Constituição. Está maltratada, mas está lá. Ela prevê que o Brasil é um estado democrático, no qual devem ser respeitados os direitos humanos, também indicados no texto constitucional.

O país assinou, ainda, diversos tratados internacionais de direitos humanos. Neles, basicamente, se compromete a respeitar os direitos humanos. São vários, pelo menos no papel. Tudo aquilo que qualquer ser catalogado como humano precisa para viver dignamente.

Nesse cenário, conforme escrito nos tratados, na Constituição e nas leis que respeitam a Constituição e os tratados, todos os seres catalogados como humanos têm todos os direitos afirmados como humanos, cabendo-lhes, também – a todos, sem exceção –, respeitar os direitos humanos de todos os outros seres do catálogo. Tudo, à primeira vista, muito simples.

Acontece que, no meio do caminho entre o texto escrito pelos seres humanos e o respeito aos direitos humanos escritos, tem o ser humano que interpreta, dá sentidos, põe limites e aplica o texto de diferentes formas. Daí complica. Muito conflito e violação aos direitos humanos que os próprios seres humanos escreveram.

Cito o edital do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), prova que avalia o desempenho dos alunos no fim do ensino médio, servindo, ainda, à seleção de candidatos ao ingresso em universidades públicas pelo Sisu (Sistema de Seleção Única) e a bolsas de estudo pelo Prouni (Programa Universidade Para Todos). Uma das etapas do exame é a redação. E, tratando dela, o edital previa a atribuição de nota zero à redação que violasse os direitos humanos.

Olhada, assim, mais de perto, num caso concreto, com mais cuidado, vê-se que a questão não é nada simples.

Não posso, no exercício do meu direito humano à liberdade de expressão discordar de um direito dito humano? Não posso criticar a propriedade privada? O direito de herança? Não posso denunciar aspectos nocivos do “livre” mercado? Claro que sim.

Mereço zero se fizer isso, com argumentos razoáveis, sem discursos de ódio? Mereço zero se, em minha crítica, respeitar os direitos humanos dos demais, tratando todos como seres humanos com os mesmos direitos? Claro que não!

Outra coisa é, sob o argumento do direito humano, da liberdade de expressão, ofender e excluir o outro, defendendo um catálogo de seres humanos privilegiados, mais humanos e com mais direitos humanos do que os demais.

Posições favoráveis a mais violência e mais discriminação contra grupos historicamente marginalizados, a defesa do trabalho escravo, da violência de gênero, do genocídio indígena, do bandido bom é bandido morto, dos direitos humanos para humanos direitos, do linchamento da turma da escola sem partido e do MBL (Movimento Brasil Livre) só pelo fato de falarem besteira, etc. etc. não têm nada a ver com o exercício de um direito, com a liberdade de opinião. É discurso e prática de ódio. Não pode! Nota zero.

A democracia admite, sem dúvida, críticas aos governantes e suas leis. A crítica aos direitos humanos e o debate sobre seus contornos são importantes. Contudo, como todos os direitos humanos, a liberdade de expressão tem limites. Discorde dos outros respeitando-os. Como vovó também já dizia: nosso direito acaba quando começa o do vizinho.

Mas a dificuldade persiste: quando exatamente acaba o nosso e começa o do vizinho?

O STF (Supremo Tribunal Federal), em decisão de sua presidenta, Carmen Lúcia, entendeu, no caso, que a nota zero implicaria “mordaça”. Para a proteção da liberdade de expressão, deixou-a sem limite nenhum. No exercício desse direito humano pode desrespeitar os dos outros. Os incomodados que questionem depois, como e se puderem, os estragos causados.

No meio do caminho entre o texto escrito pelos seres humanos e o respeito aos direitos humanos nele escritos, tinha uma pedra. Tem várias pedras. Sobre a história dos apedrejados, apesar dos tratados, da constituição e das leis que afirmam direitos humanos, segue a mesma.