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Decisão judicial sobre direitos humanos na redação do Enem é inconstitucional, diz especialista

CEDH-PB/Divulgaçaõ
Imagem: CEDH-PB/Divulgaçaõ

Nivaldo Souza

Colaboração para o UOL, em São Paulo

28/10/2017 04h00

A jurisprudência existente no STF (Supremo Tribunal Federal) deve fazer a Corte derrubar a decisão da 5ª Turma do TRF1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região) que proibiu, em função da ausência de “referencial objetivo”, o uso dos direitos humanos como critério de anulação, sem correção, das redações do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio).

A avaliação é da advogada Melina Fachin, professora de direitos humanos e direito constitucional da Universidade Federal do Paraná. “É sempre preciso buscar critérios objetivos para corrigir (redações), mas enquanto houver pessoas corrigindo essas redações, sempre vai existir o critério da subjetividade. Isso foi utilizado como uma desculpa para conceder uma ordem que do ponto de vista constitucional não se sustenta”, afirma.

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A afirmação foi em reposta ao argumento do desembargador federal Carlos Moreira Alves, cujo parecer aprovado por 2 votos a 1 na quarta-feira (25) pela 5ª Turma acolheu ação da Associação Escola Sem Partido.

O magistrado sustentou que os corretores das dissertações adotam como “mecanismo” para “punição pelo conteúdo das ideias” seus próprios referenciais sobre os direitos humanos.

A professora diz que o critério relativo aos direitos humanos adotado pelo INEP (Instituto Nacional de Educação Profissional), órgão que organiza o Enem, é sustentado pela Constituição. “O que se faz é eleger um valor constitucional fundamental à nossa convivência política comunitária, que nosso poder constituinte escolheu em 1988 queira ou não eu, você ou o Escola Sem Partido. Isso faz parte do nosso pacto político como um processo de correção. Não vejo como isso afronte o direito a alguém que esteja submetido a fazer a prova”, avalia.

Já o advogado do Escola Sem Partido, Romulo Nagib, sustentou em artigo publicado no site Jota nesta sexta-feira (27) que o artigo 5º da Constituição proíbe o cerceamento da liberdade de expressão, o que estaria por trás dos critérios do Enem. “Graças a essa garantia constitucional, ninguém em nosso país pode ser obrigado a professar ou não professar determinado credo religioso, político-ideológico ou filosófico para usufruir de um direito; ninguém pode ser obrigado a dizer o que não pensa para poder entrar numa universidade”, disse.

Melina refuta essa tese alegando que a Constituição garante a liberdade, mas desautoriza ofensas a valores assegurados como direitos humanos, entre eles: liberdade religiosa, não discriminação de minorias e defesa da vida.

“O nosso modelo constitucional trabalha com limites claros da liberdade de expressão. Não há, obviamente, censura prévia. Mas a nossa Constituição, ao eleger os direitos humanos como tema fundamental para reger nossas normas republicanas, coloca também limites para as ações públicas e privadas”, afirma a professora. “Não há uma patrulha ideológica como alegam alguns. O que há é um respeito aos parâmetros constitucionais fundamentais”, diz.

Direitos humanos - Marlene Bergamo/Folhapress - Marlene Bergamo/Folhapress
Decisão judicial foi tomada a poucos dias da prova de redação do Enem 2017
Imagem: Marlene Bergamo/Folhapress

Cartilha

A Cartilha do Participante do Enem 2017, elaborada pelo INEP, diz que os critérios de avaliação se reportam às Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos firmadas em 2012 pelo Conselho Nacional de Educação.

Para isso, o documento considera a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), a Declaração das Nações Unidas sobre a Educação e Formação em Direitos Humanos, a Constituição de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996), o Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos (PMEDH 2005/2014), no Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3/Decreto nº 7.037/2009), no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH/2006).

O artigo 4º das Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (disponível aqui) lista 7 princípios utilizado pelo Enem para obedecer essas regras: dignidade humana; igualdade de direitos; reconhecimento e valorização das diferenças e das diversidades; laicidade do Estado; democracia na educação; transversalidade, vivência e globalidade; e sustentabilidade socioambiental.

Conforme o tema, a redação é enquadra nesses princípios. O Enem apresenta no ano seguinte a cada prova como aplicou as diretrizes, uma vez que o tema da redação é sigiloso.

Na Cartilha do Participante de 2017, o Enem elenca 7 critérios aplicados no ano passado para anular dissertações. Nesses casos, de acordo com o documento do INEP, os estudantes infringiram os direitos humanos na hora de discorrer sobre o tema “Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil”. O Enem usou os seguintes critérios para anular redações em 2016:

  1. Ideias de violência ou de perseguição contra seguidores de qualquer religião, filosofia, doutrina, seita, inclusive o ateísmo ou quaisquer outras manifestações religiosas (desde que estas respeitem os direitos humanos);
  2. Ideias que possam ferir o princípio de igualdade entre as pessoas, atacando grupos religiosos, bem como seus elementos de devoção, deuses e ritos;
  3. Ideias que levam à desmoralização de símbolos religiosos;
  4. Ideias que defendam a destruição de vidas, imagens, roupas e objetos ritualísticos;
  5. Ideias de cerceamento da liberdade de ter ou adotar religião ou crença de sua escolha e da liberdade de professar religião ou crença, de forma individual ou coletiva, pública ou privada, por meio de culto ou celebração de ritos;
  6. Ideias que difundem propostas de proibição de fabricação, comercialização, aquisição e uso de artigos e materiais religiosos adequados aos costumes e às práticas fundadas na respectiva religiosidade, ressalvadas as condutas vedadas por legislação;
  7. Ideias que estimulem a violência contra infratores da lei e/ou contra indivíduos intolerantes, tais como: linchamento público, tortura, execução sumária, privação da liberdade por agentes não legitimados para isso.

Melina Fachin avalia que os critérios respondem ao que Constituição defende como direitos humanos. Ela sugere haver uma confusão entre a ideia de democracia e direitos, o que estaria sendo usado para colocar os conceitos em conflito.

“Democracia e direitos humanos caminham juntos. Os direitos humanos dão informação ao conteúdo democrático, que nós mesmos vamos desempenhar na prática como democracia. Acho muito perigoso o maniqueísmo que se está querendo criar, como se a liberdade de expressão e da manifestação democrática encontrasse resistência nos direitos humanos. Muito pelo contrário, elas se reforçam mutuamente”, afirma a professora paranaense.

O UOL tentou falar com o desembargador Carlos Moreira Alves, mas a assessoria do tribunal informou que ele não dará entrevistas e que já se manifestou sobre o tema nos autos do processo.

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