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Abaixo-assinado pede reaplicação de Enem a alunos prejudicados no Salgueiro

Moradores do Complexo do Salgueiro pedem paz após chacina no último final de semana - MARCOS PORTO/AGÊNCIA O DIA/AGÊNCIA O DIA/ESTADÃO CONTEÚDO
Moradores do Complexo do Salgueiro pedem paz após chacina no último final de semana Imagem: MARCOS PORTO/AGÊNCIA O DIA/AGÊNCIA O DIA/ESTADÃO CONTEÚDO

Lucas Borges Teixeira

Do UOL, em São Paulo

26/11/2021 18h57

Moradores de São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, organizaram um abaixo-assinado para solicitar a reaplicação da prova do Enem a alunos prejudicados pela operação policial no Complexo do Salgueiro, que deixou pelo menos nove mortos no último domingo (21). A estimativa é que 500 candidatos tenham deixado de fazer a prova.

O documento pede que os jovens que não se sentiram seguros em sair de casa em meio aos tiros e clima de tensão no fim de semana tentem a reaplicação, alegando "problemas logísticos". A DPU (Defensoria Pública da União) e o mandato da deputada Tabata Amaral (PSB-SP) já acionaram o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) sobre a possibilidade.

O UOL procurou o Inep, mas não teve resposta até o fechamento da matéria.

A ação policial começou após a morte de um sargento e resultou em chacina, no domingo. Com tiroteio durante a madrugada e sem certeza do fim, muitas mães e muitos alunos ficaram com medo de deixar suas casas para ir aos locais de prova, diz João Pires, morador de São Gonçalo e idealizador do abaixo-assinado.

Conforme o UOL apurou, a ação teve pelo menos 75 policiais do Bope (Batalhão de Operações Especiais). Os moradores resgataram por conta própria os corpos atirados no manguezal às margens da comunidade.

"Meu filho não consegue sair de casa"

"Todo mundo ali foi impactado", afirma João Pires, que é funcionário da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro e conhece professores, mães e alunos da comunidade.

Ele diz que não esperava que a operação fosse durar tanto tempo, mas logo notou que a ação impactaria na aplicação da prova.

"Assim que a prova começou, passei a receber mensagem de mãe, professora: 'Meu filho não consegue sair de casa', 'Meus alunos ficaram com medo de ir até o local, 'E agora, o que a gente faz?'", conta Pires.

Na segunda-feira (22), ele decidiu, então, fazer um balanço de quantos alunos teriam sido prejudicados. Segundo ele, dos cerca de 2 mil inscritos nos seis locais de prova mais próximos ao Complexo do Salgueiro, cerca de 500 não compareceram.

"Não necessariamente todos são da comunidade nem todos perderam por isso, mas é o número mais concreto. Para você ver o tanto que uma operação causa ali, um quarto dos alunos foi impactado", afirma Pires.

Ele então decidiu organizar um abaixo-assinado para exigir a aplicação da prova e foi até as redes sociais para dar mais visibilidade ao problema.

"Notei que, nesse assunto, ninguém estava comentando. Claro que tem de falar das mortes, mas também quero chamar atenção ao futuro desses jovens que também está sendo assassinado", afirma Pires. Segundo ele, já há mais de 7 mil assinaturas no documento.

Prejudicou também aos que foram

A ação não prejudicou apenas aos faltosos. Em uma rotina marcada por medo e violência policial, os jovens que se arriscaram e foram aos locais de prova realizaram o exame com o "psicológico abalado", afirma Pires.

Muitas mães, principalmente as que veem a prova como a única chance de melhorar de vida, arriscaram mandar seus filhos, mas como faz a prova assim? Estava morrendo gente na porta da casa do menino e eles fazendo prova. Não tem como fazer o exame direito com esse psicológico, se borrando de medo."
João Pires, organizador do abaixo-assinado

Edital prevê reaplicação por motivos específicos

O edital do Enem prevê reaplicação a estudantes que estejam com doenças infecciosas, como covid-19, ou que tenham tido "problemas logísticos", "fatores supervenientes, peculiares, eventuais ou de força maior". São eles:

  • Desastres naturais (que prejudiquem a aplicação do Exame devido ao comprometimento da infraestrutura do local);
  • Falta de energia elétrica (que comprometa a visibilidade da prova pela ausência de luz natural);
  • Falha no dispositivo eletrônico fornecido ao participante que solicitou uso de leitor de tela;
  • Erro de execução de procedimento de aplicação que incorra em comprovado prejuízo ao participante.

Pires conta que está vendo junto ao mandato da deputada Tabata Amaral como enquadrar a situação do Salgueiro entre essas causas. Segundo ele, no entanto, "não há precedentes de reaplicação em casos de operação policial".

Ele diz que conversou na tarde de sexta (26) com um coordenador de logística do Inep e teve como resposta que a Superintendência do Rio já está acompanhando o caso.

Na última quarta (24), a DPU acionou o Inep para maiores esclarecimentos e o mandato de Tabata Amaral fez o mesmo, por meio de ofício na Câmara dos Deputados, na quinta (25).

"Estamos falando de toda uma comunidade afetada com tiroteio por 33 horas. Por isso, enviei um ofício para o Inep, para que eles olhem para isso, e estou apoiando outras iniciativas, como o abaixo-assinado", disse que deputada ao UOL.

"É preciso dizer o quão absurdo é que, diante de uma pandemia, esses alunos sofram ainda com esse medo, essa insegurança, esse desalento", completou.

O prazo para resposta ao DPU acaba na próxima segunda (29). Se o órgão não se pronunciar, Pires pretende judicializar a questão.

Descrença no Estado

Apesar da força de vontade e da atenção que a iniciativa tem ganhado, Pires conta que os alunos com quem conversa estão desanimados e dizem não acreditar que o Estado fará alguma coisa para resolver a situação.

Eles estão muito descrentes de que os responsáveis vão fazer alguma coisa. O papel do Estado, para eles, é sempre muito ausente, infelizmente.
João Pires, organizador do abaixo-assinado

Pires, por sua vez, se diz confiante de que todo o esforço renderá algum resultado. "Estamos fazendo porque é o que resta. No fundo, eles têm aquele 1% de esperança. Essas crianças precisam muito", completa.