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Alunos sem internet e computador perdem quase 90 pontos na redação do Enem

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Ana Carla Bermúdez e Gabriela Sá Pessoa

Do UOL, em São Paulo

01/08/2020 04h00

Com a escola fechada devido à pandemia do coronavírus, a jovem Camila Kaliane, 18, tenta manter uma rotina de estudos com a ajuda do celular para continuar se preparando para o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Aluna do terceiro ano do ensino médio de um colégio público em Natal, ela não tem computador em casa.

"Comparado a alguns colegas meus, a minha situação ainda é boa. Na minha turma, que tem 40 alunos, quando o professor dá aula [à distância], só 12 assistem. Os outros não têm internet e não conseguem acessar", conta.

Agravada pela pandemia, a desigualdade no acesso às ferramentas tecnológicas já tinha tido reflexos no desempenho dos candidatos que fizeram o Enem no ano passado. Levantamento realizado pelo UOL com base nos microdados do Enem 2019 mostra que a nota média na prova de redação de quem declarou ter internet e computador em casa é 86,6 pontos maior do que a de quem informou não ter essas ferramentas. No exame, a prova de redação vale de zero a 1.000 pontos.

Dos mais de 5 milhões de inscritos no Enem no ano passado, 19,6% informaram não ter computador e internet em casa. Para analisar o desempenho, o UOL considerou apenas os 3,7 milhões de alunos que realizaram todas as provas.

Em matemática, realidade distinta

Os dados mostram as realidades distintas em todas as disciplinas. Na prova de matemática, por exemplo, a maioria dos candidatos sem acesso à rede em casa atingiu pontuação próxima da média e pontuou menos do que os que tinham a tecnologia à disposição.

Para Claudia Costin, diretora do Ceipe (Centro de Excelência e Inovação em Políticas Pedagógicas) da FGV (Fundação Getulio Vargas), a redação é uma das provas mais importantes do Enem.

"A redação é uma prova especialmente importante porque lida com uma competência muito necessária para a vida universitária, que é saber ler textos mais complexos e fazer uma produção textual com base naquilo que você leu", diz ela.

Na prática, segundo ela, uma diferença de quase 90 pontos na prova de redação pode custar a um aluno uma vaga no Sisu (Sistema de Seleção Unificada), programa do governo federal que oferece vagas em instituições públicas de ensino superior e que usa como seleção o desempenho obtido no Enem.

Ocimar Alavarse, professor da Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo), cita ainda que a diferença pode trazer prejuízos para a disputa por vagas no Prouni (Programa Universidade para Todos) ou por financiamento pelo Fies (Fundo de Financiamento Estudantil).

"No Enem, você tem uma escala que vai de 0 a 1.000. Essa escala tem três desvios padrão [medida que calcula a distância de um valor para a média] acima da média, algo mais ou menos assim: 500, 650, 800", diz. "Por exemplo, 70 pontos de diferença é meio desvio padrão, um percentual significativo por si só. Essa diferença de 70 pontos já é, para cursos mais concorridos, uma pontuação que limita o acesso a vagas na universidade pública, no ProUni, ou mesmo pode comprometer para o Fies", afirma.

Para Costin, que diz que "esses pontos fazem diferença", a pandemia deve agravar ainda mais esse quadro de desigualdade.

"Suponho que, dada essa nova circunstância, será pior ainda —a diferença tende a crescer. Cresceria mais ainda se não tivesse nenhuma atividade emergencial em casa, mas vai crescer mesmo assim", afirma.

A especialista explica que a preparação para uma boa redação envolve, além de treinar a produção de textos, "ter um retorno do professor e ler muito". "Nenhuma dessas três alternativas está disponível para alunos de meio mais vulnerável", diz ela.

Treinar sem suporte? Difícil

Camila Kaliane, 18, tenta manter uma rotina de estudos com a ajuda do celular  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Sem computador em casa, Camila tenta manter uma rotina de estudos para o Enem com ajuda do celular
Imagem: Arquivo pessoal

Camila, que quer prestar o Enem para tentar uma vaga em fisioterapia, diz que treinar para a redação em casa, sem o mesmo suporte que tinha com as aulas presenciais, está sendo difícil. A jovem relata que, apesar de ter encontrado plataformas que disponibilizam aulas on-line, nem sempre consegue acompanhar esses conteúdos.

"Na escola, uma professora me ajudava muito com a redação. Só que essa professora não sabe mexer no celular, então não tem como ajudar", conta.

Pelo WhatsApp, ela e outros jovens tentam se ajudar no preparo para o exame. "Tenho um amigo que estuda em escola particular. Ele estuda redação há muito mais tempo do que eu e me ajuda a melhorar", diz a estudante.

Mesmo que eu faça [em casa], não tem alguém para me dizer se está bom ou não, com uma visão mais profissional."