Pobreza e exclusão digital estragam preparação ao Enem no sertão nordestino
Ver o filho entrar em uma faculdade é sonho pelo menos nove em cada dez pais sertanejos. Neste ano, além das dificuldades educacionais históricas no semiárido, a pandemia suspendeu aulas e criou empecilhos extras para quem fará o "Enem da pandemia" a partir deste domingo.
Nas áreas rurais, longe de bons sinais de internet —e muitas vezes sem apoio dos governos—, jovens relataram ao UOL os desafios de enfrentar o Enem no ano em que as desigualdades de preparação entre estudantes ricos e pobres e ficaram ainda mais latentes.
João Pedro Rufino, 19, mora no sítio Socorro, município de Massapê (CE). As aulas na escola Willebaldo Aguiar, onde cursa o terceiro ano do ensino médio, estão suspensas desde março.
"A internet aqui no interior é totalmente diferente daquela que tem na cidade", conta o jovem, que pretende usar a nota do Enem para ingressar no curso de pedagogia. "Mas o meu sonho, desde pequeno, é ser policial."
À reportagem, ele mostra as apostilas preparativas para o Enem de 2014, dadas pela escola, que ele usou para estudar.
Mas João Pedro sabia que apenas o material produzido há mais de seis anos não seria suficiente para se preparar. Sem internet em casa, ele dava um jeito de baixar material de estudo.
Às vezes, eu ia para a casa do vizinho, ou ia para cima das pedras para poder pegar área no celular e baixar o conteúdo para estudar. Foi complicado, mas superamos.
João Pedro Rufino, estudante
O sítio em que ele mora fica distante da cidade. Na sua pequena casa, diz que não tem um local silencioso para estudar. "Não é a mesma coisa de estudar em uma sala de aula. É muito barulho, fica gente chamando sua atenção e você perde o foco", diz.
"Precisei escolher: trabalho ou estudo"
Camila da Silva Santos, 20, é estudante da EFA (Escola Família Agrícola do Sertão) de Monte Santo (BA) e está no quarto e último ano do curso técnico em agropecuária. Por conta da pandemia, não conseguiu se formar no curso no final de 2020, como era previsto.
A preparação de Camila teve um outro desafio: a necessidade de ajudar a família a se sustentar.
"Com a pandemia, comecei a trabalhar, porque minha mãe colocava barraca na feira livre e ela ficou sete meses sem poder trabalhar. Precisei escolher: ou estudo, ou trabalho. E, lógico, foi o trabalho, para colocar comida dentro de casa e suprir as minhas necessidades pessoais", conta.
Ela vai usar a nota do Enem para tentar uma vaga nos cursos de odontologia ou serviço social.
Os pais de Camila receberam o auxílio emergencial, mas o valor não era suficiente para sustentar a casa onde moram seis pessoas. "E minha mãe ainda sustenta meu irmão e minha cunhada. A demanda é grande. Meu pai também não tem trabalho fixo", explica.
A jovem, então, foi trabalhar em uma barraca de verduras de familiares na cidade. "Passei sete meses trabalhando com eles, até sair o decreto [de autorização] e minha mãe voltar a trabalhar", diz.
Por conta do período em que precisou trabalhar, diz que não conseguiu finalizar o TCC (trabalho de conclusão de curso), nem fez aulas online.
Nem tive a possibilidade de acessar algum tipo de documento que me trouxesse alguma informação sobre o Enem.
Camila da Silva Santos, estudante
Na barraca, ela trabalhava das 6h às 17h. "Quando chegava em casa, ainda tinha outros afazeres. Quando vai pegar um material para estudar, a gente já está cansada física e psicologicamente. O nível de absorção é mínimo", afirma.
Mesmo com tantas dificuldades, diz que se sente privilegiada. "Quantos jovens não conseguiram estudar porque não tinham celular, porque não tinham notebook. Eu ainda sou privilegiada, porque tenho internet na minha casa, tenho um notebook e tenho um celular. O meu desafio foi escolher o trabalho ou os estudos."
Universidade ajudou no acesso a computador
Felícia Panta, 21, terminou o ensino médio em 2016 e faz curso superior: bacharelado em ciências biológicas pela UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco). A jovem, porém, planeja trocar de curso —quer estudar medicina— e vai prestar a prova.
Na UFRPE, foi contemplada no edital aberto pela instituição para alunos de baixa renda terem acesso a computador e internet para o ensino remoto.
"Eu fui uma das alunas contempladas e recebi o valor que me possibilitou comprar um notebook e o chip de acesso a dados. Assim consegui colocar internet em casa e acompanhar as aulas online do curso que eu já faço e também acompanhar alguns 'aulões' no YouTube", diz.
A estudante vê uma preparação de Enem com muita desigualdade.
Essa prova já tem um potencial para ser um tanto quanto desigual quando a gente fala em competir. O Enem é basicamente uma competição entre alunos para ingressar na universidade, com disputa entre pessoas de ensino público e privado. E essa desigualdade ficou muito mais explícita neste ano.
Felícia Panta, estudante
Vídeos pelo WhatsApp: desafios para os professores
Desafio se manteve aos professores que atuam nessas áreas pobres. Muitas escolas adotaram o ensino delivery, com entrega de material de aulas a alunos sem acesso a internet.
No semiárido da Paraíba, o professor Antonio Valmir Paulino ensina física na Unidade Estadual Monsenhor José Borges Lagoa, em Lagoa de Roça (PB). Lá, diz, a maioria dos alunos é da zona rural.
"Nós aqui tentamos prepará-los para enfrentar o Enem, porque é uma prova que tem as suas especificidades. Eu, na minha disciplina, fiz vídeos e os mandei no WhatsApp. Também passei dicas de como era o estilo de prova do Enem —porque cada questão tem um nível de complexidade. Fizemos o que possível diante da situação", diz.
Entretanto, ele ouviu muitos relatos de dificuldades dos estudantes em assistir às aulas ou baixar o material.
"O acesso à internet era difícil. Muitas vezes os alunos usavam os dados móveis, que não têm a capacidade de um Wi-Fi. Também acontecia muito de a internet 'bugar'. A tecnologia ajuda, mas é um pouco ineficiente em locais como o nosso."
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