Voucher para creche proposto por Bolsonaro é privatização do ensino?
O governo de Jair Bolsonaro (sem partido) tenta mais uma vez aprovar o voucher para o financiamento de matrículas em creches. Desta vez, a proposta foi incluída na MP (Medida Provisória) do novo Bolsa Família com o nome de "Auxílio Criança Cidadã".
Para especialistas da área da Educação ouvidos pelo UOL, a medida pode ser um passo para a privatização da educação infantil, o que é considerado um risco para qualidade do ensino. Além disso é visto como um "jabuti", termo usado para assunto inserido em projeto de lei ou MP que não tem relação com o tema principal.
Segundo Catarina de Almeida Santos, professora da UnB (Universidade de Brasília) e dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a medida é uma "defesa do mercado empresarial que quer privatizar os serviços públicos como a educação". Procurado pela reportagem, o MEC não se pronunciou.
O texto apresentado pelo governo federal não traz muitos detalhes, mas prevê que as escolas da primeira etapa da Educação Básica assinem termo de adesão.
O documento, segundo a MP, trará as "condições e prazos para o recebimento do valor definido para o custeio parcial ou integral das mensalidades e os quantitativos de vagas".
Para Lucas Hoogerbrugge, líder de relações governamentais no movimento Todos pela Educação, o impacto da proposta vai depender da regulamentação, mas é possível já prever riscos.
"O que a literatura já nos mostra é que os resultados de outros países que adotaram a medida são mistos. O que dá certo é mais exceção do que a regra", pontua.
Não dá para se dizer até o momento se o repasse do governo será feito aos pais ou às escolas. Caso seja enviado para as instituições, o modelo é conhecido como "charter schools", quando as escolas ofertam vagas através de financiamento para receber crianças de baixa renda.
Catarina explica que a lógica de ter um voucher do ensino infantil é que: "o Estado deixa de ter uma instituição própria, voltada para o público, diversificada e que garanta profissionais com formação e remuneração adequada, para ter qualquer instituição do mercado."
A comparação que Hoogerbrugge faz é com o ProUni (Programa Universidade para Todos), que oferece bolsas parciais e integrais em universidades privadas. "A diferença do ProUni é que no ensino superior é possível fazer avaliação, já na educação infantil é um sistema muito menos regulado, você sequer tem avaliação", explica.
O perigo, segundo ele, é ampliar a oferta de creches, mas a qualidade ser prejudicial "ao ponto de ter mais benefícios a criança ficar em casa do que na escola".
Esse é um dos modelos de aumento da desigualdade. O governo não delimita quanto as escolas devem cobrar, as instituições vão aumentando o valor da mensalidade, conforme a demanda."
Lucas Hoogerbrugge, do Todos pela Educação
Segundo dados do relatório da Comex/MEC (Comissão Externa de acompanhamento do Ministério da Educação), da Câmara dos Deputados, até maio deste ano, o Brasil tinha 4.739 obras de escolas e creches com status de paralisadas, canceladas e inacabadas.
Catarina afirma que, em países como o Chile, onde a medida já é lei, famílias com mais poder aquisitivo conseguem complementar a mensalidade e matricular os filhos em escolas melhores. "Quem não tem condição complementar vai para lugares precarizados, temos uma espécie de apartheid educacional.".
A Comex também apontou que houve redução nas ações orçamentárias voltadas à educação infantil: "Do Orçamento inicial total para 2020 (R$ 100 milhões) e 2021 (R$ 134 milhões) em relação ao previsto em 2019 (R$ 362 milhões)."
Quando você não tem o poder público ofertando a educação infantil, as crianças pobres e pretas vão ficar de fora do processo. Quem está ofertando é o setor privado e esse setor terá um público específico, que não são as crianças as negras, nem as de baixa renda."
Catarina de Almeida Santo, professora da UnB
A educação infantil é uma etapa importante no desenvolvimento das crianças, segundo especialistas. Além do brincar, durante essa fase os pequenos começam a formação de vários aspectos como cidadão.
Novo Fundeb tentou incluir vouchers
Em 2020, durante a discussão do Novo Fundeb, o governo de Bolsonaro tentou reservar 5% do fundo para os vouchers. A ideia era repassar R$ 250 as famílias como um adicional aos beneficiários do novo Bolsa Família. A proposta não avançou.
"O Brasil pode repetir o erro e criar uma falsa sensação de resolver o problema. Iniciativas assim precisam ser testadas antes de ganharem escala. Queremos o recurso, sim, mas na educação. A maior política social do nosso país é a escola pública", pontuou o deputado federal Israel Batista (PV-DF) e presidente da Frente Parlamentar Mista de Educação.
A deputada federal Tabata Amaral (sem partido) criticou que o auxílio será oferecido, segundo consta no texto, apenas para chefes de famílias que tiverem emprego. "Diante de mais de 14 milhões de desempregados, criar um benefício com esse critério vai na direção contrária da redução das desigualdades".
Já o deputado Tiago Mitraud (NOVO-MG), que chegou a apresentar uma emenda no ano passado para permitir o uso de recursos para financiar instituições privadas, não se posicionou nem ao contrário ou a favor.
"O aprimoramento de programas de assistência social é sempre bem-vindo. Mas precisamos garantir que isso seja feito de acordo com as melhores evidências, com foco naqueles que mais precisam e respeito às regras fiscais, e não visando apenas resultados eleitorais. Infelizmente, temo que seja essa a preocupação do governo", pontuou.
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