Datafolha: Após ensino remoto, 76% precisam de reforço na alfabetização
"É muita dispersão. A imagem trava, o cachorro começa a latir, passa o carro do gás tocando música na rua". Os impactos do ensino remoto no aprendizado de alunos em idade escolar, relatados por Gabriel Antônio, 31 anos, professor da rede estadual de São Paulo, condizem com o que aponta pesquisa Datafolha, publicada hoje (14): boa parte dos estudantes precisará de reforço no retorno presencial às aulas.
O percentual é ainda mais alto entre crianças em fase de alfabetização, com 76% delas com necessidade de algum apoio para complementar o aprendizado, segundo pais e responsáveis ouvidos pela pesquisa.
O levantamento, encomendado por Itaú Social, Fundação Lemann e BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), ouviu 1.306 pais e responsáveis e 1.850 estudantes de escolas públicas entre os dias 6 e 30 de dezembro de 2021. A margem de erro para as respostas dos alunos é de dois pontos percentuais para mais ou para menos; já a margem de erro para as dos responsáveis é de três pontos.
Professor de História e Geografia há dez anos na escola pública Johann Gutenberg, no Parque Edu Chaves, zona norte paulistana, Gabriel lida com o que a pesquisa revela, não só enquanto educador, mas também como pai de dois alunos, um de 11 e outro de 8 anos. O caçula, que iniciou em 2020 o primeiro ano do ensino fundamental —quando as crianças começam a ser alfabetizadas— , começa em 2022 o terceiro ano sem completar a alfabetização.
"Meu filho está no terceiro ano, o último dos ciclos de alfabetização, e não está alfabetizado. Ele está silábico [termo usado quando o aluno sabe ler algumas sílabas], mas de acordo com o que deveria ser, ele deveria estar já alfabetizado. Isso também ocorre com muitas crianças da sala dele, que ainda não estão alfabetizadas corretamente no período certo", relata Gabriel ao UOL.
A necessidade de reforço também é apontada pelos pais em disciplinas como matemática (71%), língua portuguesa (70%), ciências (62%) e história (60%). Programas de apoio e recuperação nas escolas são vistos como prioridade para 28% dos responsáveis ouvidos pela pesquisa, embora menos da metade dos estudantes em escolas que reabriram estejam recebendo aulas de reforço (43%) ou apoio psicológico (35%).
"Dados assim mostram a dificuldade maior de crianças menores no ensino remoto. Isso se soma a uma dificuldade, no Brasil, de oferta de um ensino remoto realmente interativo nas redes municipais e escolas com menos recursos. Há desafios dos alunos em ter boa conectividade e acesso a equipamentos", observa a gerente de Pesquisa e Desenvolvimento do Itaú Social, Patrícia Mota Guedes.
2 em cada 10 alunos correm risco de deixar escola
De acordo com o levantamento, dois em cada dez estudantes correm o risco de abandonar a escola. Os principais motivos para a desistência são a perda de interesse nos estudos (29%) e a dificuldade em acompanhar as atividades (29%). Para 15% dos alunos, há também o medo de não serem acolhidos diante das dificuldades que tiveram no aprendizado durante o ensino remoto.
"Há o medo de não ser acolhido por não saber ler. São crianças que vão começar o ano agora, ou estão no segundo ano, e estão com vergonha e medo. O acolhimento e o estímulo serão fundamentais para evitar altas taxas de evasão", explica Patrícia.
Gabriel acrescenta que escolas e professores devem entender e respeitar os perfis diferentes dos alunos, que aprendem as lições de formas diferentes.
"Essa é uma geração muito mais visual. E sempre tem um estudante sinestésico, que aprende com o corpo, e que só precisa não ficar nove horas sentado numa cadeira olhando para o quadro. Não adianta se deparar com um monte de coisas, escutar um monte de coisas, e não assimilar. Esse aluno precisa de exemplos práticos", relata.
O acolhimento também diz respeito às minorias. "Meu filho de 11 anos é autista e teve um bloqueio por causa de uma professora que o fez ter medo da escola. Tem sido um resgate muito grande ele voltar às aulas em 2022", conta Gabriel.
O recorte racial entra nesta conta. Entre estudantes que declararam negros, 19% citaram a falta de acolhimento como um fator que pode levá-los a deixar a escola; o mesmo motivo afeta 9% entre alunos que se declaram brancos.
"Isso retrata o racismo estrutural, as desigualdades por questões raciais que já existiam antes da pandemia e foram aprofundadas", acrescenta Patrícia.
Entre os entrevistados, 12% disseram que podem deixar a escola para trabalhar. "Muitos alunos de 13, 14 anos, aproveitaram o momento fora da escola e foram complementar renda na família. Foram trabalhar e largaram a escola", diz Gabriel.
83% dos alunos que voltaram ao ensino presencial estão evoluindo
O estudo aponta que o retorno às aulas presenciais levou a um impacto positivo no desempenho dos alunos: para os responsáveis entrevistados, 83% dos jovens que retornaram ao ensino presencial estão evoluindo no aprendizado.
A percepção da qualidade da educação recebida pelos estudantes é maior entre aqueles que voltaram a ter aulas presenciais (71%) em comparação aos que mantiveram o ensino remoto (55%).
"Isso reforça o papel da escola enquanto ambiente de aprendizagem para conteúdo e conhecimento, engajamento, vínculo", afirma Patrícia. "Não é descartar o quanto se aprendeu ao longo da pandemia, a questão da tecnologia que entrou no radar dos professores, das redes, das escolas. Mas não substituem o papel da escola enquanto ambiente presencial", observa.
43% acreditam que aumento salarial dos professores deve ser prioridade
A maioria absoluta dos responsáveis entrevistados pela pesquisa afirmou reconhecer a importância dos professores na vida das crianças e dos jovens (99%). Questionados sobre qual deve ser a prioridade na educação nos próximos dois anos, 43% defenderam o aumento salarial dos professores.
"Muitos pais descobriram na pandemia que a gente deveria pagar muito mais pela educação", observa Gabriel. No período em que lecionou em casa, relata ter vivido uma rotina quase integral de ensino; foram criados grupos de WhatsApp com pais e alunos para passar atividades e responder dúvidas em qualquer hora do dia. "Alguns alunos acordavam 4h, 5h da madrugada e mandavam mensagens sobre atividades", exemplifica.
Além dos grupos da escola em que trabalhava, ele também participava de outros das escolas de seus filhos, já que a jornada não era apenas de professor, mas também de pai de duas crianças em idade escolar: "Mantenho contato até hoje com os professores dos meus filhos".
"A relação das famílias com os professores se estreitou demais. Estamos falando de professores que deixavam o seu número de telefone, na grande maioria das vezes um telefone pessoal, para mães, pais, responsáveis tirarem dúvidas sobre lição de casa, deixar áudios com explicações para as crianças", acrescenta Patrícia.
"Não há experiência no mundo que tenha conseguido resultados educacionais sem valorizar a profissão do docente", conclui ela.
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