Aluno em delegacia e censura: professores criticam escolas cívico-militares
Em 2019, quando o modelo de escola cívico-militar chegou ao CED 01 (Centro Educacional) de Estrutural, no Distrito Federal, a professora Miriam* estava otimista. Para ela, a mudança traria mais segurança ao ambiente escolar. Segundo o governo do Distrito Federal, 90% dos professores, pais e alunos com mais de 18 anos aprovaram a adesão.
Meses depois, no entanto, a educadora ficou decepcionada —foi quando os educadores passaram a tratar de assuntos que não eram "bem vistos" pelos policiais militares, que fazem parte da equipe disciplinar.
Entre julho e agosto, o UOL ouviu relatos de profissionais e alunos de três escolas cívico-militares, localizadas no Distrito Federal, no Paraná e no Rio de Janeiro, após receber informações sobre confusão dentro das unidades. Nos três estados, há semelhança nos casos relatados por pais e professores.
Todas as pessoas ouvidas contaram que a relação entre policiais e professores e alunos é turbulenta e que até o conteúdo passado em sala de aula foi prejudicado após a implantação do modelo.
Os nomes dos entrevistados nesta reportagem foram trocados a pedido deles, por medo de represálias.
Como funcionam essas escolas? O formato de escola cívico-militar existe no Brasil desde os anos 1990, mas foi no governo Jair Bolsonaro (PL) que se tornou um dos pilares do MEC (Ministério da Educação), ganhando uma secretaria responsável pelas unidades. O modelo, como o nome sugere, conta com uma gestão compartilhada entre pastas da Educação e da Segurança Pública.
Bolsonaro instituiu o Pecim (Programa de Escolas Cívico-Militares) em 2019, numa parceria entre o MEC e o Ministério da Defesa. O programa foi uma promessa da campanha de 2018.
Segundo dados da pasta da Educação, o Brasil fechou 2021 com mais de cem escolas no programa. Em 2022, a meta é alcançar 216 — todas em regiões vulneráveis.
O que dizem os professores: No CED 01, a primeira situação de incômodo relatada pelas educadoras ouvidas pelo UOL aconteceu em outubro de 2021, durante o planejamento de um festival de cultura inglesa. A ideia era que os alunos se fantasiassem e, durante o intervalo, pudessem aprender frases e palavras em inglês, entre outras atividades.
"Eles [policiais] não entendem que isso também é educação. Na cabeça deles, os alunos precisam estar em forma, com calça jeans, blusa branca e em fila", diz a professora Sueli*. No festival, segundo as educadoras, não houve ações dos policiais.
Mas um mês depois foi possível perceber uma reação da equipe disciplinar — foi quando os alunos fizeram murais para o Dia da Consciência Negra. Além de homenagens a personalidades negras, os estudantes incluíram charges que tratavam da violência policial contra negros.
De acordo com os professores, o então diretor disciplinar pediu para que a equipe pedagógica retirasse o mural feito pelos alunos.
A pressão e a perseguição depois desse episódio aumentaram, relatam os educadores. Professores têm pedido licença médica, remanejamento e dizem que não têm aguentado a pressão. Segundo Miriam, a equipe disciplinar tem visto professores como "inimigos".
Não existe um treinamento para policiais trabalharem nas escolas. Eles foram jogados. Não existe um perfil padrão, tem policial que trabalhava na rua e foi afastado, por exemplo."
Miriam, professora que pediu transferência de escola da Estrutural
Em maio deste ano, a vice-diretora Luciana Paim foi exonerada do cargo sem ser comunicada. A saída foi publicada no Diário Oficial após o vazamento de um áudio em que ela chama o tenente da escola de "cagão".
Segundo apurou o UOL, na gravação Paim comentava sobre o tratamento diferenciado direcionado a alguns alunos e dizia que o tenente não tinha coragem de falar para ela sobre um problema recorrente na unidade: o encaminhamento de estudantes para a DCA (Delegacia da Criança e do Adolescente).
O que dizem os pais de estudantes: Os pais dizem que o tratamento dos policiais em relação aos alunos também se transformou ao longo do tempo. Sônia*, mãe de uma estudante da CED 01, disse que sua filha foi levada para a DCA dentro de uma viatura por causa de um desentendimento com o professor.
O policial ligou para ela, disse que a filha havia se envolvido em uma discussão e seria levada para a DCA. Ao UOL, Sônia afirma que foi até a escola e os policiais a "convenceram" que era melhor levar sua filha à delegacia. Contaram que a jovem havia chamado o professor de merda —o que foi negado pelo educador.
Sônia reclama que, na delegacia, a estudante ficou em uma sala sozinha, porque, segundo o policial, seria importante dar um "susto". A mãe assinou um termo —mas não recebeu cópia. Semanas depois ela descobriu que a "ficha" da filha estava "suja" — por desacato.
Sou a favor da lei, mas levar uma adolescente pra delegacia em um caso desnecessário como esse? Pedi pro Conselho Tutelar revogar, mas ainda não tive resposta. O que eu sinto depois disso é que os policiais não estão preparados para trabalhar com criança e adolescente."
Sônia*, mãe de estudante que foi levada para delegacia
O que diz o governo: Procurada pelo UOL, a Sejus (Secretaria de Justiça) do Distrito Federal, responsável pelo Conselho Tutelar, informou que a questão não seria de sua alçada e pediu para que a Secretaria da Segurança Pública fosse procurada.
À reportagem, a SSP não negou o encaminhamento de adolescentes para a delegacia. Em nota, a Polícia Civil —que responde à SSP— disse que, pelo caso envolver menor de idade, "fica impedida de divulgar qualquer informação contida nos registros de ocorrências".
De acordo com relatos ouvidos pela reportagem, levar alunos para a DCA tem sido um procedimento padrão. Entre os motivos: briga entre alunos —inclusive por causa de namorado— ou por usar celular na escola.
Em maio deste ano, um policial jogou spray de pimenta no rosto de um aluno e o algemou dentro da unidade de ensino, segundo apurou a reportagem.
No mesmo mês, o Ministério Público do Distrito Federal decidiu revogar uma nota técnica que considerava legal o modelo de escola cívico-militar.
MP levantou casos e pediu esclarecimentos. A reportagem procurou o MP, mas os promotores não aceitaram dar entrevista. Recentemente, a Proeduc (Promotoria de Justiça de Defesa da Educação) pediu esclarecimentos à Secretaria da Educação sobre o que acontece nas escolas que seguem esse modelo.
Segundo o documento do próprio MP:
- Em 2019, foram 119 encaminhamentos de alunos da escola cívico-militar para a DCA.
- De janeiro a maio de 2022, 70.
O crescimento indica que o modelo também tem falhado nos seus objetivos disciplinares, pois sugere a inaptidão da polícia para administração preventiva e positiva de conflitos escolares."
Relatório do Ministério Público
O documento indica que, de 2019 a 2022, os alunos foram levados à DCA por:
- Ameaça (20,43%),
- Vias de fato --ou seja, briga corporal (11,91%),
- Posse de droga (9,795),
- Lesão corporal (7,66%) e
- Desacato (6,38%).
Vídeos divulgado por alunos da CED 01 mostram um monitor, que é PM, dizendo que "se precisar" iria bater em um aluno. Em outras imagens, um policial dá voz de prisão para um estudante do ensino médio dentro da escola —a situação aconteceu durante uma manifestação a favor da vice-diretora que foi exonerada.
E em outros estados? Queixas semelhantes foram relatadas ao UOL por professores de escolas cívico-militares do Paraná e do Rio.
Maria*, que leciona em uma escola paranaense, disse que ficou "constrangida" quando viu dois alunos sendo levados para a DCA em uma viatura por causa de uma "briga de adolescente". Segundo ela, a situação se repete "semanalmente".
Ao UOL, a Secretaria Estadual da Educação negou que seja um procedimento padrão e afirma que a recomendação é "sempre pelo diálogo". "Mesmo num caso difícil, em que um aluno violentou outro estudante na escola, esse foi o procedimento seguido antes de encaminhar o estudante para as instituições de segurança", afirma a pasta.
Para Maria, a equipe disciplinar deveria trabalhar apenas com foco na disciplina dos alunos, "como o nome já diz". "Mas a gente percebe que eles sempre entram nas salas, olham para os quadros. Determinados assuntos sociais temos que tomar cuidado e evitar."
Nessas escolas, os alunos também precisam seguir uma lista de regras como:
- Uso de uniforme,
- Meninas devem usar cabelo preso e sem unhas pintadas,
- Meninos devem manter o cabelo curto ou raspado.
- Celulares e fones de ouvido não são permitidos.
Modelo é criticado por sindicatos: Para Vanda Bandeira Santana, secretária do Sindicato dos Professores do Estado do Paraná, as escolas cívico-militares promovem um processo "autoritário" e "excludente".
"A militarização da educação é muito grave, porque ela transforma as relações sociais dentro da escola, o processo de formação, de socialização dos alunos, em uma relação em extrema hierárquica", aponta Vanda, que afirma que o formato não respeita a diversidade.
Nos últimos meses, a Apeoesp (Sindicato dos Professores do Estado de São Paulo) travou uma briga na judicial para barrar o modelo no estado paulista. A categoria chegou a conseguir uma liminar que barrava a mudança, mas no fim de julho a Justiça derrubou a decisão provisória.
Estados também têm programas próprios. O Paraná, além de fazer parte do Pecim, tem um programa estadual. Segundo a Secretaria da Educação, é "mais uma modalidade dentre várias outras, como os colégios agrícolas, do campo, profissionais e integrais".
O DF também tem um programa próprio que atende 15 de cerca de 720 escolas, segundo a SSP. Assim como o Pecim, a pasta usa como critério de seleção "vulnerabilidade como violência, evasão escolar e IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da região".
Refeição em falta e média reduzida no Rio: Em uma escola cívico-militar do Rio de Janeiro, uma professora relatou ao UOL as reclamações e denúncias de pais de alunos e funcionários. Uma das famílias diz que há tratamento privilegiado no atendimento de filhos de militares.
A refeição servida para os estudantes não é suficiente, por isso, de acordo com os relatos, os últimos da fila comem apenas arroz e feijão em pequenas quantidades.
"Os pais têm medo de reclamar, pois já sabem que ocorrem muitos assédios morais lá", diz um ex-aluno. Mulheres e negros são tratados de forma diferente dos alunos homens e brancos, mesmo quando a advertência é a mesma.
Em nota, a Secretaria de Educação do Rio afirmou que repassa mensalmente recursos para alimentação escolar. Em abril, segundo a pasta, houve o aumento do valor por aluno e em julho foram disponibilizados mais de R$ 12 milhões.
Diferente do Paraná e do DF, as ações negativas no Rio são de responsabilidade da diretora pedagógica. Os militares, segundo a professora, ficam atrás de mesas e não intervêm para solucionar esses problemas.
Foi a diretoria pedagógica que decidiu mudar a média —de 5 para 7— com o objetivo de obter melhores colocações em rankings educacionais. Com mau desempenho, alunos que precisam de mais atenção acabam desistindo de estudar, alegam os pais e educadores. Ao UOL, a secretaria informou que todas as unidades da rede seguem a portaria que determinou a média 5.
O que diz o poder público: A pasta fluminense ainda disse que fica "impedida" de apurar mais detalhes já que não sabe de qual escola se trata. O estado tem 12 unidades cívico-militares e os entrevistados pediram anonimato.
O governo do Rio afirmou também que orienta todas as equipes a desenvolverem programas de combate à violência e "estratégias para o enfrentamento das diversas formas de violência e promovendo a igualdade entre homens e mulheres".
Você fala de forma velada sobre assuntos que estão ligados à realidade dos alunos. Precisa escolher as palavras. É um sentimento que estamos sendo vigiados o tempo inteiro."
Maria, professora de escola no Paraná
Procurados pela reportagem, a Secretaria de Educação do DF e o MEC não responderam aos questionamentos. A pasta do Paraná afirmou que tem ouvido profissionais em todas as escolas e a "prova disso" é que afastou dezenas de funcionários e militares "por não seguirem os padrões de respeito e integridade".
O UOL perguntou sobre denúncias recebidas pelo governo paranaense —a secretaria disse que não contabilizou o número de casos, porque o "foco tem sido a resolução de problemas". "Grosso modo, a maior parte das denúncias versam sobre condutas que podem ser caracterizadas como assédio moral. Isso, é bom ressaltar, não acontece só nos colégios cívico-militares, mas em todas as instituições de ensino", diz a nota.
Família elogia modelo: No total, a reportagem entrou em contato com 14 pessoas de seis estados para buscar informações sobre o dia a dia nas escolas cívico-militares. Apenas uma família elogiou o modelo —a empreendedora Margarete dos Santos Bezerra, mãe de Geovanna, foi indicada pela Secretaria da Educação do Tocantins.
Margarete transferiu sua filha de escola durante a pandemia de covid-19 e "mesmo com as críticas" preferiu manter sua decisão. "Não me arrependo", contou.
Junto da mãe, Geovanna disse ao UOL que também teve medo de entrar no novo colégio —mas hoje se sente bem. Sobre as regras do modelo, ela diz que não se importa mais.
Em outras escolas já tinha o código para vestimenta, o que mudou mais foi usar o cabelo preso, porque prefiro ele solto, mas não faz muita diferença."
Por que esse tema é importante? As escolas cívico-militares representam 0,1% das escolas públicas no país —e tiveram o orçamento triplicado neste ano. São mais de R$ 68 milhões previstos para serem usados no programa lançado por Bolsonaro. Além disso, o modelo impacta a educação de alunos da escola pública e o funcionamento de outras unidades pelo país.
*Os nomes dos entrevistados foram trocados a pedido deles, por medo de represálias
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