O tenente paladino cidadão de bem sem partido
O interior de São Paulo, lugar onde vivo, tem um novo paladino. Fez carreira na polícia e, agora, é vereador, presidindo a Comissão de Segurança Pública da Câmara Municipal. Chamam-no de Tenente. Acredita, salvará os cidadãos de bem.
Da tribuna, dia desses, deu a solução ao problema dos moradores de rua. Se fosse prefeito, “passava cerol”. Pediram para explicar o que queria dizer com isso: “passar cerol” significa o quê exatamente, em vossa gíria cavalheiresca? Como um bom homem de bem, explicou. Não estava sugerindo matar ninguém, claro. Precisamos levantar a capivara dessa turma e prender os que devem ser presos. Quanto aos que não são daqui, mandemos embora! O que não pode é o cidadão de bem ficar com medo de andar na rua por causa dos moradores de rua.
Tá certo, forcei a mente, tentando pensar com cabeça de super-herói. A rua é nossa, dos cidadãos de bem. Para nossos carros, principalmente. O espaço público não é para qualquer um (perdoem-me, confesso, nesse ponto do raciocínio, tive um pouco de dificuldade. Pareceu-me contraditória a mente super heroica).
Sigamos. O Tenente paladino da justiça e protetor dos cidadãos de bem não quer só passar o cerol em morador de rua vagabundo. Não. Tem mais. Muitas ações. É, também, o autor do projeto de lei “Escola sem partido” na cidade.
Afirma a “neutralidade política” do Estado (um Estado “sem partido”). Aqui, também não entendi muito bem. Afinal, está escrito na Constituição Federal que somos uma democracia; que reconhecemos um conjunto de direitos humanos; que, como nação, temos, dentre outros objetivos, a promoção do bem de todos, sem discriminações. São partidos que tomamos, eu sempre achei.
O projeto prevê, também, que escola não pode aplicar a “ideologia de gênero”. Tem pênis é macho, tem vagina é fêmea. E ponto final. O poder público não se intrometerá em questões de orientação sexual. Assunto proibido. Não permitirá nada que comprometa o desenvolvimento do aluno em harmonia com “identidade biológica de sexo”. Para nosso paladino, ser neutro, não ter partido, nessa matéria, é ser contra a viadagem, contra essas imoralidades de colar velcro e queimar a rosca.
Só fiquei com uma dúvida, Tenente. Me ajuda a entender o que faremos, então, com gays, lésbicas e travestis. O mesmo que faremos com moradores de rua? Passemos cerol?
Sigamos, sigamos. O que é certo é certo. O Tenente continua: “A escola é lugar de aprender, de preparar o aluno para o mercado de trabalho”. Nada de doutrinação político-partidária. Está no projeto de lei: o professor deve, portanto, tratar os temas de forma “justa”. Ao falar, por exemplo, de torturas praticadas até hoje por agentes do Estado, tem que ensinar os prós e os contras, sem tomar partido. Se tocar no assunto genocídio de povos indígenas, violência contra a mulher, racismo, pornografia infantil, tráfico de pessoas para remoção de órgãos, a mesma coisa. Os prós e os contras. Nada de tomar partido. E nada de professor incentivando aluno a manifestação, passeata ou ato público.
Desculpa interromper mais uma vez. É a última, prometo. Tenho outra dúvida, Tenente. Insisto, a Constituição é partidária dos direitos humanos, da dignidade da pessoa humana, da democracia. O professor não pode se posicionar a favor desses preceitos? Contra a sua violação? E se a manifestação for em defesa da Constituição? Pode incentivar o aluno a participar?
Quanto à pessoa que toma partidos diferentes do senhor, Tenente. É cidadão de bem? Passa cerol nele também?
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