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Omissão da UFRJ em fiscalização de cota racial levou a fraudes, diz reitora

Denise Pires de Carvalho, reitora da UFRJ - Ilan Pellenberg/FramePhoto/FOLHAPRESS
Denise Pires de Carvalho, reitora da UFRJ Imagem: Ilan Pellenberg/FramePhoto/FOLHAPRESS

Marina Lang

Colaboração para o UOL, no Rio

26/10/2019 04h00

A UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) foi omissa quanto à fiscalização das cotas raciais, segundo avalia a reitora Denise Pires de Carvalho. Para ela, a falha provocou o alto número de denúncias de fraude, que estão sob investigação de uma comissão da universidade. A fim de evitá-las, Denise disse, em entrevista ao UOL, que uma comissão passará a verificar os inscritos por meio da política de cotas no ato de ingresso na UFRJ a partir de 2020.

De acordo com a instituição, há 230 casos sob análise que podem ter usado, de forma fraudulenta, a lei das cotas raciais. Mesmo com as investigações em curso, esses alunos continuam estudando. Até este ano, somente a autodeclaração racial era suficiente para o ingresso de cotistas.

Apesar do volume considerável de casos investigados, eles representam 1,45% do total de estudantes que ingressam na UFRJ por meio das cotas raciais. Levantamento solicitado pelo UOL à universidade mostra que, entre 2014 e 2019, 15.793 alunos tiveram acesso à academia por meio desse sistema desde a sua implementação.

Ao menos seis casos na UFRJ já são alvo de ação por parte do MPF (Ministério Público Federal) na Justiça. De acordo com o procurador regional dos Direitos do Cidadão, Renato Machado, outros seis estão sendo investigados pela Procuradoria na UFRJ —outros casos em universidades públicas também estão sob análise ou já foram denunciados.

Nas denúncias, o MPF pede a anulação da matrícula e a aplicação de multa para esses cotistas. "As fraudes continuam sendo a minoria, não são todos que têm essa cara de pau", disse Machado ao UOL.

"Todos os casos denunciados judicialmente são bastante similares: são pessoas de pele branca, algumas de olhos claros, azuis ou verdes. Uma aluna, por exemplo, é branca, tem olhos claros e inclusive tem sobrenome alemão."

O que essa aluna alega é que seu avô materno era negro e que ela sofreu 'discriminação' por ser 'mestiça'. Mas isso não é critério para garantir vaga por meio de cotas raciais. A cota é para o negro, baseada no fenótipo, na aparência, e voltada para as pessoas que têm potencial de sofrer discriminação realmente.

Renato Machado, procurador regional dos Direitos do Cidadão

A maior parte das denúncias, que são anônimas, foram feitas por estudantes, segundo a reitora da UFRJ.

"A UFRJ se omitiu, o que levou à situação dos próprios estudantes terem que pesquisar e denunciar. Isso porque a universidade se omitiu", lamentou Denise, cuja gestão teve início em julho e promete consertar a falha nas admissões por cotas raciais já em 2020, por meio de verificações de bancas constituídas pela universidade.

Leia a seguir os principais pontos da entrevista com a reitora da UFRJ.

UOL - Como se identificaram as possíveis fraudes?

Denise Pires de Carvalho - As denúncias começaram a chegar na ouvidoria da universidade e aumentaram em número. Em junho, a gestão anterior decidiu constituir comissão para analisar as denúncias [a reitora iniciou seu mandato em julho deste ano] que chegaram nas unidades da universidade, muitas vezes com cópia para a ouvidoria. Algumas das denúncias chegaram via Ministério Público também. São vários tipos de denúncia: por exemplo, recebemos uma lista de alunos do curso de Medicina, que está sendo verificada.

Nós acreditamos que as denúncias sejam feitas pelos próprios alunos porque, basicamente, só eles sabem e têm acesso ao sistema universitário, além de conhecerem os estudantes, dentre calouros e veteranos. Existe um código de estudante da universidade, o DRE [Divisão de Registro de Estudantes]. No site, mostra-se o aluno que entrou por meio de cota racial ou não. Eles sabem o DRE, a que aluno se refere. Essa questão ter sido denunciada por alunos eu acho a mais delicada.

UOL - Por quê?

Denise de Carvalho - Porque sem dúvida a UFRJ se omitiu, o que levou à situação dos próprios estudantes terem que pesquisar e denunciar. Isso porque a universidade se omitiu. Deveria haver uma comissão de aferição antes do ingresso dos estudantes. Mesmo havendo fraudes, quem seria acionada é a comissão, sem envolvimento dos alunos. Tudo isso [suspeita das 230 fraudes] cresceu muito na universidade por omissão nas gestões anteriores.

Acredito que esse seja o número mais alto entre as universidades, porque as outras possuem uma verificação por comissões.

A UFRJ não tratou o tema com a seriedade merecida e, para que a lei das cotas raciais seja seriamente implantada, a universidade precisa fazer essa análise. Todos querem ter acesso a universidades públicas, que são as melhores do Brasil, e isso pode suscitar fraudes.

Faltou conversarmos com outras instituições. A Uerj [Universidade Estadual do Rio de Janeiro] foi a primeira a ter cota, mesmo antes de ser lei. Todas as instituições têm comissões para aferir os estudantes que ingressam por meio de cotas, e a UFRJ falhou em não implementar isso.

UOL - Quais as medidas que serão tomadas para evitar fraudes no ingresso via cotas raciais na UFRJ em 2020?

Denise de Carvalho - Nós estamos constituindo nossa comissão de aferição a partir dessa gestão. Trata-se de uma Comissão de Heteroidentificação que agirá no ato de ingresso na UFRJ para combater essas fraudes a partir de 2020. Isso está sendo construído ao mesmo tempo em que as investigações sobre esses 230 casos estão em andamento.

Essa comissão está sendo criada por meio do Conselho do Ensino de Graduação —do qual fazem parte professores, técnicos administrativos e estudantes, conforme a Lei de Diretrizes e Bases— e será composta por mais de 25 membros.

Estamos nos inspirando no que mais funciona. Temos excelentes exemplos de comissões em outras universidades que funcionam muito bem. Os membros do Conselho de Graduação estão passando por cursos e treinamentos para implantar as comissões, que continuarão a ser treinadas para sua implantação já no início do ano que vem.

UOL - Quais as penalidades que os alunos podem sofrer academicamente?

Denise de Carvalho - A comissão foi implantada pela última gestão, mas ainda não foi regulamentada. Por ora, os membros da comissão estavam analisando e dizendo se tinha ou não direito de entrar. Ou seja, o trabalho está focado em identificar se houve fraude.

Agora, o Conselho de Ensino de Graduação está discutindo eventuais penalidades. Até porque há casos bastante distintos, de estudantes no final do curso até outros que acabaram de ingressar.

E juridicamente, quais seriam as implicações? Por exemplo, há um escândalo correndo nos Estados Unidos sobre bolsas universitárias e uma mãe acaba de ser condenada na Califórnia a uma pena de prisão de três semanas e uma multa de US$ 15 mil por ter matriculado o filho branco como negro por meio das cotas raciais.

Quanto às sanções internas, nós decidiremos por aqui —elas podem variar entre o possível desligamento do estudante, uma suspensão e outras penalidades. No caso de estudantes que já terminaram o curso, essas pessoas responderão na Justiça comum.

Acredito que seja de responsabilidade da universidade fazer essas denúncias [ao Ministério Público]. Nós temos o dever de agir de forma correta pelo bem-estar da sociedade. Essa posição não é paternalista e ajudará na evolução da sociedade brasileira.

Essa coisa de achar que se trata do jeitinho brasileiro, que é o brasileiro que quer burlar, não está correta: não é o brasileiro, é o ser humano, o ser humano precisa da aplicação das leis para viver de forma adequada. A justiça social depende disso. Só seremos um país mais justo se isso [fraudes] for combatido [por meios legais].

É assim na Europa, na Austrália, na Noruega: as penalidades acontecem e se cumpre a pena. Não é uma questão do brasileiro, e é por isso que nós precisamos ampliar a educação no Brasil.

Como instituição de ensino, nós temos o dever de demonstrar que isso é incorreto, que somos contrários a essa postura socialmente incorreta. Fraude é crime, seja para cotas raciais, seja para as cotas sociais, de portadores de deficiência física. O que posso dizer é que tudo será analisado com muita seriedade daqui para a frente.

UOL - As investigações sobre essas 230 possíveis fraudes já tiveram algum resultado, ainda que parcial?

Denise de Carvalho - Já há estudantes em etapa de recurso. Em breve, vamos passar à aplicação de sanções —embora elas ainda estejam sob definição. Nós vamos ter um panorama melhor depois que os recursos chegarem, depois de identificar a ascendência da pessoa —que não dá direitos de ingressar por meio de cotas raciais, que fique claro.

Sobre isso, inclusive, eu tenho um olhar diferente: se o filho de um negro que não é negro, que nasceu branco, e se inscreveu, talvez ele tenha sido induzido ao erro.

O critério para ingresso por meio de cotas raciais é fenotípico, o que, de fato, é bem complexo: são características fenotípicas que envolvem não só a cor da pele, mas um conjunto fenotípico [traços físicos como cor dos olhos, formato do nariz e tipo de cabelo], e envolve também os familiares.

UFRJ investiga fraudes no sistema de cotas

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