O que você precisa saber sobre Machado de Assis para o vestibular
Resumo da notícia
- O escritor é um dos mais cobrados nas provas de vestibulares
- Machado de Assis é considerado um observador agudo da sociedade carioca de sua época
- O autor trata de assuntos cotidianos que oferecem diversas reflexões sobre o comportamento humano
Em 2019, o escritor Machado de Assis (1839-1908) virou notícia diversas vezes. Uma campanha realizada pela Faculdade Zumbi dos Palmares ficou famosa ao propor uma nova versão da foto clássica de Machado de Assis, na qual o escritor é retratado com a pele negra.
"Machado de Assis era um homem negro. O racismo o retratou como branco. É hora de reparar essa injustiça", diz o texto da iniciativa, que quis impedir que o racismo seja perpetuado na literatura e encorajar novos escritores negros.
Machado de Assis voltou a ser assunto com as hashtags #Capitu, #Bentinho e #DomCasmurro, que apareceram nos trending topics do Twitter. O motivo? A discussão se Capitu traiu ou não traiu Bentinho. O maior mistério do romance Dom Casmurro levantou debates acalorados entre youtubers e seguiu aceso por dias nas redes.
Reconhecido como um dos mais importantes escritores do Brasil, Machado de Assis é um dos autores mais cobrados nas provas de vestibular. O candidato precisa ler clássicos como Dom Casmurro, Quincas Borba e Memórias Póstumas de Brás Cubas.
O UOL conversou com os professores de português Suzana Regina Vaz Húngaro (Colégio Bandeirantes/SP), Eva Albuquerque (Cursinho da Poli/SP) e Alexandre Braga (Colégio Franco-Brasileiro/RJ) sobre alguns pontos-chaves para entender Machado de Assis.
Da origem humilde à carreira de escritor
Descendente de escravos, Joaquim Maria Machado de Assis nasceu de uma família pobre e foi criado no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro (RJ) —a então capital do país era a sede da corte do Império do Brasil.
Autodidata, Machado teve a vida marcada pela ascensão social. Começou sua carreira como jornalista e se tornou funcionário público. Foi reconhecido como um grande escritor ainda em vida. Em 1897, foi eleito presidente da Academia Brasileira de Letras. Versátil, o autor transitou por muitos gêneros literários e escreveu romances, contos, crônicas, poemas e peças de teatro.
Um observador da sociedade
Na virada do século 19 para o século 20, na chamada Belle Époque, o Brasil vivia um momento de intensas transformações sociais e urbanas, dos costumes e do pensamento da época. A queda da escravidão e do Império criou uma nova realidade no país. Houve a abolição da escravatura, o início da República e a intensificação da urbanização, com a consolidação do capitalismo e a ascensão de uma nova burguesia.
Machado de Assis é considerado um observador agudo da sociedade carioca de sua época. Ele trata de assuntos cotidianos, mas oferece diversas reflexões sobre o comportamento humano, nas quais procura desmascarar "o jogo" ou as "máscaras" das relações sociais.
"Entre outros temas, os autores realistas abordavam o comportamento da elite brasileira e o modo como essa classe dominante se movia. No Brasil, Machado de Assis faz isso como ninguém", diz Eva Albuquerque.
Fase romântica
A obra do início da carreira de Machado de Assis é muito diferente da sua fase final. O escritor é da última geração do romantismo e se inspirou nessa primeira escola para criar as primeiras histórias. Ele mostra personagens que buscam o amor e a ascensão social, mas sem fazer críticas à sociedade. São exemplos os romances A Mão e a Luva, Helena e Iaiá Garcia.
Mudança para o realismo
Na década de 1880, o escritor muda seu estilo e suas obras se tornam mais maduras e realistas. O realismo é uma escola literária que tem como característica principal mostrar a realidade tal qual ela é, fugindo da idealização homem e da sociedade e dos estereótipos da visão romanceada que vigorava até aquele momento.
Machado de Assis desenvolveu um novo tipo de narrativa e foi precursor do realismo no país. "Ele é estudado como o introdutor do realismo no Brasil. Como uma pessoa que tem um estilo diferente de outros escritores realistas, porque ele inclui o realismo psicológico na narrativa", diz a professora Suzana Regina Vaz Húngaro.
O foco do escritor se vira para o interior dos personagens, destacando suas vontades, necessidades, defeitos e qualidades. As questões psicológicas foram amplamente demonstradas em romances como Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, Memorial de Aires, Esaú e Jacó e contos como O Alienista, A Cartomante e Missa do Galo.
Memórias Póstumas de Brás Cubas
A inauguração do realismo no Brasil se dá com a publicação do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado em 1881. A narrativa tem como tema as experiências de Brás Cubas, um filho abastado da elite brasileira do século 19 que narra as suas memórias depois de morto.
A obra foi considerada a mais radical experimentação da prosa brasileira até o momento por causa de seus recursos de narrativa. "Esse livro é revolucionário porque traz um narrador-defunto, que fala em primeira pessoa. Como não tem mais o que perder, ele não tem mais o medo do julgamento alheio", avalia Suzana Regina Vaz Húngaro.
O narrador conta os fatos com digressões, muitas vezes altera a sequência do tempo cronológico, sem em seguir uma ordem temporal linear, outra novidade para a época.
Ironia, humor e pessimismo
"Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico, como saudosa lembrança, estas Memórias Póstumas". A irônica dedicatória aparece em Memórias Póstumas de Brás Cubas e ilustra bem o uso da do humor e do cinismo, características marcantes da obra de machadiana.
"Também costuma ser explorado no vestibular o viés pessimista, fruto de uma profunda descrença nos valores sociais vigentes, mesclando o humor zombeteiro à melancolia dos relatos", avalia Alexandre Braga. Segundo o professor, Machado de Assis usava do recurso para mostrar uma visão crítica da sociedade —ele diz o que quer, fingindo não dizer. Esses traços são frutos de um ceticismo em relação à realidade em que o autor vivia.
Capitu traiu ou não traiu?
Ambientado no Rio de Janeiro do século 19, o romance Dom Casmurro (1899) é narrado pelo protagonista Bento Santiago, personagem-título. Ele envelhece e se mostra profundamente amargurado. Ele busca, por meio da narrativa, rememorar e compreender fatos do seu passado, principalmente os que envolvem Capitu. Bentinho se centraliza em uma dúvida: Capitu é ou não é culpada de adultério?
"Não temos respostas definitivas para isso dentro do livro, já que a obra foi construída dentro de uma ambiguidade. Machado de Assis, como mestre que era, construiu o livro sob a perspectiva do marido traído", avalia Eva Albuquerque. O enigma é impossível de ser decifrado, já que o romance é narrado sob apenas um ponto de vista e não mostra fatos ou provas concretas.
O leitor também não pode deixar de atentar para um fato: Bentinho é advogado. Até hoje, se discute as forças dos seus argumentos. "Nesse sentido, ele funciona como acusador e também como juiz, pois acusa Capitu de traição, julga a esposa e a condena. Não podemos nos esquecer de que Capitu não teve direito de defesa dentro da obra, já que a narrativa é construída sob a perspectiva do marido ciumento", lembra a professora.
Pode ter tudo sido uma ilusão? "Um leitor desavisado acredita nesse discurso de Bentinho. Mas um leitor crítico pode duvidar e se perguntar se tudo não foi fruto de um ciúme doentio. E o fato de não existir uma resposta certa mostra a genialidade de Machado", acredita Suzana Regina Vaz.
Personagens femininos fortes
Uma característica marcante da obra de Machado de Assis é o perfil feminino. Ele criou uma galeria de personagens femininos com características marcantes. Na primeira fase literária do autor, as mulheres são retratadas de uma forma mais idealizada e submissa, como a dócil personagem do romance Helena, que vive um amor "impossível".
Na fase realista, Machado traz mulheres mais ousadas, ambíguas e com características psicológicas complexas. "Capitu é uma personagem muito forte, sensual e desenvolta", diz Suzana Regina Vaz. Capitu, a dona dos olhos de cigana oblíqua e dissimulada, como descreveu o personagem José Dias, é uma das personagens mais intrigantes da literatura brasileira.
Estilo de escrita marcante
Machado de Assis tem uma característica estilística muito bem definida. Suas obras são marcadas pelo uso da metalinguagem, pela ironia e pela intertextualidade. "Os exames de vestibular podem demandar ao aluno que identifique traços da estilística de Machado e refletir sobre os efeitos estéticos desses recursos linguísticos", indica o professor Alexandre Braga.
A metalinguagem é a propriedade que tem a língua de voltar-se para si mesma. Ela está presente, por exemplo, no relato de Brás Cubas, que intercala os episódios de sua história com comentários e digressões sobre o próprio ato de escrever. A Intertextualidade é uma referência explícita ou implícita de um texto em outro.
A conversa direta com o leitor também acontece em diversos romances do escritor. "Ao interpelar o leitor ou fazer digressões, o narrador faz refletir sobre o próprio trabalho de criação com a linguagem", conta o professor. Não é raro o leitor encontra comentários críticos do narrador, não apenas sobre as atitudes dos personagens, mas também sobre o próprio ato de narrar.
Quincas Borba e o Humanitismo
O livro Quincas Borba (1891) narra a trajetória de Rubião, professor que se torna rico de uma hora para outra ao receber uma herança deixada pelo filósofo incompreendido Quincas Borba, criador de uma filosofia fictícia chamada Humanitismo.
"A guerra tem um caráter benéfico e conservador. Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição", diz Quincas Borba em um trecho do livro.
O professor Alexandre Braga explica que por trás desse pensamento, existe a ideia de que na luta pela sobrevivência, quem vence é o mais forte. "A filosofia do Humanitismo ilustra a noção de um delicado equilíbrio de forças, sintetizado na ideia de uma lei do mais forte, a quem a recompensa é dada: suprimir uma coisa é garantir a sobrevivência de outra. Numa luta de todos contra todos, impõe-se uma antropofagia social: comer ou ser comido". O personagem exemplifica a tese com a famosa frase: "Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas".
A teoria do Humanitismo é pessimista. Ela aponta para o absurdo da existência e pode ser interpretada como uma crítica à sociedade. Ela se opõe à filosofia do Humanismo, que valoriza o homem, colocando-o no centro de tudo. "A ironia suprema dessa obra reside na elaboração de uma teoria atribuída a um filósofo louco, mas que corresponde ao comportamento alienado de homens socialmente considerados normais" avalia o professor.
Crítica ao cientificismo
A obsessão pela ciência permeia várias personagens da obra machadiana. Machado de Assis se posicionou frente às ideias importantes para o desenvolvimento da ciência de sua época, e faz uma sátira de correntes como o determinismo, que diz que o homem era determinado pela raça e pelo meio, e o Positivismo, que apostava no progresso da sociedade por meio da ordem social e do desenvolvimento das ciências.
Na obra O Alienista (1882), o protagonista é Simão Bacamarte, um cientista que decide construir um hospício para tratar os doentes mentais na pequena cidade de Itaguaí. Sem limites, ele abastece o local de cobaias humanas, internando todas as pessoas que julgasse ter alguma espécie de loucura. O médico é retratado como símbolo de uma ciência fria e o escritor faz uma reflexão sobre quem é realmente louco.
Contos
Em relação aos contos, O Espelho (1882) é obrigatório em alguns vestibulares. A narrativa centra na história de Jacobina, um homem que possui uma teoria sobre a alma humana: segundo ele, os seres humanos possuem duas almas - uma que olha de dentro para fora e outra que olha de fora para dentro. Ao contar sobre sua vida, Jacobina percebe que ele tinha apenas a "alma externa", o mundo das aparências. A "alma interna" seria nossa real personalidade.
"Machado observava como dependemos das narrativas que construímos sobre nós próprios e das imagens que queremos transmitir aos outros. Geralmente, nós queremos corresponder a essas imagens, e isso faz com que nos tornemos, muitas vezes, um tanto hipócritas, já que as narrativas e as imagens que construímos sobre nós mesmos nem sempre correspondem ao real que somos", diz Eva Albuquerque. Neste conto, aparecem temas chaves como ser versus parecer, desejo versus máscara, vida pública versus vida íntima. Essa seria uma possível antecipação de um teor psicanalítico.
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