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"Governo não olha para nós", diz jovem que fez grupo de WhatsApp para Enem

Jovens da periferia usam o grupo "Favela Se Vira" para estudar durante a pandemia - Reprodução
Jovens da periferia usam o grupo "Favela Se Vira" para estudar durante a pandemia Imagem: Reprodução

Ana Carla Bermúdez

Do UOL, em São Paulo

24/05/2020 04h00

Com as escolas fechadas devido à pandemia do coronavírus, jovens vestibulandos da periferia de São Paulo decidiram criar um grupo de WhatsApp para continuar os estudos para provas e exames, como o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio).

Todos os dias, estudantes de bairros como Brasilândia, Grajaú, Capão Redondo e Jardim Eliane se reúnem no grupo "Favela Se Vira", para ajudar uns aos outros com os conteúdos e tirar dúvidas. "A gente só tem a gente. Temos um governo que não olha para nós", diz a ex-aluna de escola pública Joyce Lopes, 18, idealizadora e uma das fundadoras do grupo.

Criado no início de maio, o "Favela Se Vira" reúne hoje cerca de 247 pessoas e funciona com base em uma grade horária organizada por matérias, para que os participantes tirem dúvidas.

Para evitar um excesso de mensagens, o grupo é aberto e fechado de acordo com a grade horária: são 42 plantões, de segunda a sábado, das 9h às 20h. Os professores, muitas vezes, são os próprios estudantes.

Joyce Lopes, 18, quer tentar uma vaga em Geografia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
"A gente só tem a gente", diz Joyce, que criou o grupo
Imagem: Arquivo pessoal

"Pessoas que estão prestando vestibular e que têm uma bagagem em certas matérias fazem parte dos plantões. Também tem gente que está na faculdade, cursando Farmácia ou Agronomia, por exemplo, e que se dispõe a ajudar", explica Joyce, que é uma das plantonistas de História.

Desigualdade

Para Joyce, o grupo é uma alternativa aos jovens da periferia que, sozinhos, não conseguem continuar os estudos durante a pandemia — seja por falta de acesso às ferramentas tecnológicas, ou por falta de condições materiais e psicológicas.

Na periferia, a gente não se preocupa só com vestibular. Tem muitas outras questões. Aqui a gente está se preocupando sobre se vai ter ou não um pão para comer amanhã
Joyce Lopes, criadora e uma das plantonistas do grupo "Favela Se Vira"

Joyce mora com os pais e antes trabalhava como jovem aprendiz em uma empresa de comércio e varejo, mas perdeu o emprego por conta da pandemia. O salário, ela conta, era usado para pagar uma bolsa parcial que havia conseguido em um cursinho pré-vestibular.

Grupo de WhatsApp "Favela Se Vira" - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

"Tive que sair do cursinho para não passarmos mais dificuldades. Estudo por conta e com o grupo", diz.

Para ela, o grupo é uma forma de mostrar que na periferia "não tem só coisa ruim" e de ajudar outros jovens a não se sentirem sozinhos.

"A gente veio para mostrar que daqui saem empatia, solidariedade, pessoas que também querem um futuro. Mas que, por existir tanta desigualdade, muitas pessoas não conseguem. Estamos aqui para mostrar que estamos tentando", conta.

"Por causa do grupo, consegui me organizar"

Priscyla Ingrid dos Santos, 23, mora em Osasco (SP) e é uma das participantes do grupo.

"Foi por causa dele que consegui me organizar. Uma das administradoras fez um cronograma de estudos para mim", diz ela, que quer tentar uma vaga em Direito e estudou a vida toda em escola pública.

Priscyla Ingrid dos Santos, 23 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Grupo foi "luz no fim do túnel", diz Priscyla
Imagem: Arquivo pessoal

Mãe de uma menina de 4 anos e de um menino de 8 meses, ela conta que sonha desde pequena em ser advogada. "É a primeira vez que vou tentar o vestibular. Nos outros anos foi bem difícil para mim", revela Priscyla.

"Foi com o grupo que eu vi uma luz no fim do túnel, porque antes dele eu não estava estudando", diz.

Assim como Joyce, ela também se queixa da falta de apoio para os estudos a distância durante a pandemia. "Acho que os políticos deveriam ajudar fornecendo o básico, como internet para todos. Mas, como não ajudam, a favela tem que se virar".

Regras

Para que as coisas não saiam do rumo, a administração do grupo é bastante rígida. Não é permitido falar de assuntos que não sejam relacionados aos estudos e nem enviar figurinhas ou fake news. Também não são permitidas brigas ou assédio.

Grupo de WhatsApp "Favela Se Vira" - Reprodução - Reprodução
Regras do grupo "Favela Se Vira"
Imagem: Reprodução

A estudante Laura Ferreira, 19, mora no Grajaú e é plantonista de Literatura. Ela diz que, até hoje, não houve problemas com quem entrou no grupo. "A maioria está conseguindo entender como funciona."

"Eles chamam a gente [os administradores] no privado, contam que estão entendendo o conteúdo e agradecem. Ou, quando eles ainda têm dúvidas, a gente continua explicando até eles entenderem", afirma.

"Outra espécie de regra do grupo é que nenhuma dúvida é boba, todas podem ser tiradas. Mas deixamos bem claro que, se alguma regra for desrespeitada, vamos pedir educadamente para a pessoa sair."