Não é seguro reabrir escolas em meio à catástrofe, diz pesquisador
O cenário de escalada da pandemia no Brasil, com o recorde de quase 2.300 mortes registradas na última quarta-feira (10), torna cada vez mais complicada a retomada das atividades escolares presenciais. A situação é preocupante, sobretudo pela dificuldade de infraestrutura observada na rede pública.
Um estudo realizado com 3.672 secretarias municipais de Educação, dois terços do total, mostra que 49% delas relataram altos graus de dificuldade no acesso à internet pelos alunos.
Embora 60% dos municípios tenham oferecido aulas gravadas, o principal recurso de ensino remoto no Brasil foram aulas por WhatsApp e materiais impressos, utilizados por 90% das cidades brasileiras.
Além do impacto sobre o ensino, pedagogos vêm alertando para os efeitos que as escolas fechadas podem ter sobre a sociabilidade de crianças e adolescentes.
Nas famílias mais pobres, teme-se ainda um abandono escolar por jovens de maior idade que podem trocar o estudo pelo trabalho ante o cenário econômico desfavorável.
O físico Roberto Kraenkel, professor da Unesp (Universidade do Estado de São Paulo) e pesquisador do Centro de Contingência contra Covid-19 no estado, desenvolveu modelos matemáticos que possibilitam estimar os impactos da reabertura das escolas na sociedade.
Ele é enfático quanto à completa impossibilidade de se pensar no tema em meio ao cenário de explosão de casos no Brasil. "Estamos no meio de uma catástrofe", diz.
Kraenkel também critica as medidas adotadas em momentos mais brandos para a reabertura de escolas — muito insuficientes, em sua opinião.
"Foi absolutamente caótico. O que mais se ouviu foi o discurso de que iriam reabrir as escolas com toda a segurança, sobretudo nas particulares. Quando você vai esmiuçar a segurança, é uma porcaria. Tinha colégio passando as pessoas por um túnel de ozônio. Isso não serve para nada, só faz mal à pessoa", afirma.
Na entrevista a seguir, o cientista questiona a priorização dada a estabelecimentos comerciais, sem que nenhum foco tenha sido direcionado para a retomada segura das atividades escolares presenciais.
Ressaltando que não é possível ter impacto zero com a reabertura de escolas, Kraenkel considera imprescindível haver condições de testagem e rastreio para evitar que o contato entre estudantes e professores tenha efeitos de transmissão em cadeia.
Deutsche Welle: Como é a metodologia das estimativas de contágio que você desenhou?
Roberto Kraenkel: Existe toda uma área de pesquisa científica ligada aos modelos matemáticos. Dentro da epidemiologia, você tenta olhar para isso da seguinte forma: vou separar as pessoas entre as que podem ter a infecção, as que estão imunes e as infecciosas, como se a gente classificasse cada um de nós em um estado.
Ou eu sou suscetível e posso pegar a doença; ou eu já peguei e estou imune; ou posso estar doente, com ou sem sintomas. São vários fatores. A gente olha e observa os fluxos entre essas categorias.
Disso, não se tira tanta informação por si. Mas é possível pensar o seguinte, traduzindo para equações matemáticas: se eu pegar os resultados e eles me explicarem bem o passado, talvez projetem alguma coisa para o futuro.
Esse processo é chamado de ajuste de modelos. É assim que se fazem projeções, não só em epidemiologia, mas em outras áreas também. São métodos razoavelmente tradicionais.
É preciso tomar cuidado, porque muitos grupos fazem o que a gente chamaria de previsão. Isso não é bom, em geral. Existem muitas coisas desconhecidas, e tenta-se resumir um sistema que é a sociedade, e a doença na sociedade, dentro de uma simplificação. Em qualquer instância, a ciência tenta simplificar as coisas. Mas tem muitas coisas desconhecidas, que criam incertezas.
Nenhum modelo faz projeções cravadas, do tipo: amanhã vai fazer 30 graus, na metodologia. Não dá para se pensar que é assim, ao menos no estado da arte da modelagem matemática em epidemiologia.
Em geral, o que você faz são cenários possíveis para o futuro, quais hipóteses geram quais diferenças no futuro. Esta é a grande área em epidemiologia, matemática e tudo mais.
DW: O que os estudos mostram sobre o impacto da volta às aulas?
RK: A gente tem que ter claro que todo aumento de contato implica aumento da transmissão. Não existe volta às aulas sem aumento nenhum de contato.
No entanto, o governo precisa manter o número de casos baixos e em queda, na medida do possível. Nessa perspectiva, é possível reabrir as escolas, sem reabrir outras atividades, e ter um impacto pequeno. Como eu disse, não há impacto zero.
É preciso pensar de duas formas: é seguro ir para a escola? Neste momento, não, porque estamos no meio de uma catástrofe. Em cenários de baixa de casos, você pode ter formas de tentar fazer com que o perigo de volta às escolas seja reduzido"
Outra coisa é perguntar se a simples volta às aulas pode gerar um novo pico epidêmico, por uma reprodução de casos, já que a escola é uma conexão entre domicílios, por meio das crianças. Tem que se tomar bastante cuidado com isso.
É para esse fim que deve haver as testagens e o rastreio. Mas isso não foi aventado em lugar nenhum no Brasil. E isso só se coloca quando há poucos casos, e você não quer que a reabertura das escolas crie novos casos. Não é a situação atual. A gente vive uma explosão de casos, e está preocupado se ir para a escola é seguro ou não. Nesse caso, não é seguro.
DW: O Brasil poderia ter criado condições para priorizar a reabertura das escolas?
RK: O discurso da reabertura só contemplava a economia, que, aparentemente, se restringe aos estabelecimentos comerciais. Poderia ter sido criada uma situação em que a prioridade tivesse sido invertida, e ainda com um impacto pequeno.
Diferentemente dos países europeus, asiáticos e dos EUA, nunca se tentou implementar no Brasil a ideia de testagem em massa para encontrar as pessoas assintomáticas e rastrear as que tiveram contato com elas, as chamadas contactantes. A partir disso, seria possível mantê-las quarentenadas até saírem os resultados dos testes.
Esse método funciona como uma forma de contenção se o número de casos é baixo. Se for muito alto, não tem sistema de rastreio de contactantes que abarque a quantidade de pessoas a ser rastreadas. Isso ficou muito claro em outubro, quando a [chanceler federal] Angela Merkel admitiu, na Alemanha, ter perdido o controle do rastreio.
Quando o número de casos é bem baixo, é possível delimitar os surtos. Se surge um caso, você consegue sufocar, ao mapear todos os contactantes. Em nenhum lugar do Brasil isso foi feito. Simplesmente, desistiram. Há pouquíssimos exemplos da tentativa de manter um sistema de rastreio.
Você pode olhar nos modelos matemáticos, ver o efeito do rastreio, de contactantes, colocar em quarentena preventivamente até saber se estão infectadas. Mas não houve isso, mesmo nos estados mais ricos.
Inevitavelmente, o lockdown gera uma contenção do contágio, pela redução do contato. O que resta responder é como sair de uma forma que não crie um novo efeito de subida. É a coisa mais difícil de saber como proceder, neste momento.
Depois que você consegue diminuir o número de casos, em uma situação de restrição, com todo mundo em casa, como abrir escolas e o comércio sem relançar a epidemia? É uma questão difícil.
DW: Em momentos mais brandos da pandemia, estados e municípios tentaram reabrir as escolas. Houve o devido cuidado com os protocolos sanitários?
RK: Foi absolutamente caótico. O que mais se ouviu foi o discurso de que iriam reabrir as escolas com toda a segurança, sobretudo nas particulares. Quando você vai esmiuçar a segurança, é uma porcaria.
Tinha colégio passando as pessoas por um túnel de ozônio. Isso não serve para nada, só faz mal à pessoa. O vírus se transmite porque você fala e respira, pelo ar, e não porque sua roupa está cheia de vírus"
Existem muitas coisas que estão só no nível do discurso retórico, de que tudo será feito com a máxima segurança. É como quando você entra no supermercado e tiram sua temperatura no pulso. Muitas vezes, parece que você já está morto, de tão baixa que ela sai. Não são medidas reais de segurança, são apenas simbólicas.
Acho que existe consciência muito maior por parte dos gestores das escolas públicas sobre o que é perigoso e o que não é, mas eles contam com recursos muito mais escassos. Tem esse problema.
Deveriam ter sido levadas mais a sério uma série de possibilidades que não são discutidas amplamente. Por exemplo, ter aulas ao ar livre. Fala-se na importância de ter ventilação da sala. Aí, você vai ver, e a sala tem uma janela. Não adianta. A ventilação tem que ser ampla, de fato.
DW: Que outras medidas seriam importantes para essa retomada?
RK: Você tem que ter menos gente na classe. É possível formar bolhas, seja a classe inteira ou um conjunto dela, que não entram em contato com outros estudantes. Isso tem que ser feito de tal forma a evitar aquela grande aglomeração na frente das escolas, senão não funciona. Teria que haver um acompanhamento muito forte.
E, acompanhado, obviamente, de testagem. Na Alemanha, estão se introduzindo agora os testes rápidos de antígenos, não os sorológicos. Na Inglaterra, eles tinham o objetivo de usar essa ferramenta para testar cada estudante duas vezes por semana. É preciso testar nessa escala e lidar com as consequências quando o teste dá positivo.
Mas, junto com isso, você tem que adotar gestos de cuidado: a formação de bolhas, o distanciamento entre grupos, não ter o recreio no mesmo horário para todos. Com criança pequena, é um desafio muito grande. Não sei qual é a solução específica nesse caso. É preciso ser meticuloso e ter muita atenção aos detalhes.
Aqui, só se observou a redução nas classes, que naturalmente tiveram algum impacto, mas é muito insuficiente. De toda forma, as explosões de casos recentes não têm nada a ver com escola.
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