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OPINIÃO

'Hoje sei que excludente é a academia, não as cotas', diz Isabel Lustosa

Isabel Lustosa, pesquisadora da Universidade Nova de Lisboa - Isabel Lustosa/Arquivo pessoal
Isabel Lustosa, pesquisadora da Universidade Nova de Lisboa Imagem: Isabel Lustosa/Arquivo pessoal

Isabel Lustosa, em depoimento a Leticia Marques

Colaboração para o UOL, de São Paulo

29/08/2022 04h00

Em 2006, Isabel Lustosa, 66, assinou um documento que movimentou o debate público: o manifesto popularmente conhecido como "anticotas". A historiadora, escritora e pesquisadora do Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisbo (Portugal), ela temia que a política de ações afirmativas pudesse provocar uma cisão na sociedade brasileira, estigmatizando os estudantes cotistas. Hoje, 16 anos depois, Isabel admite que mudou de ideia, classifica como positivos os efeitos que as cotas - sancionadas nacionalmente em 2012 por meio da lei 12.711 - provocaram nas universidades, mas não se arrepende de ter assinado o documento: "Era o que eu pensava a partir das informações de que eu dispunha", diz.

O manifesto do qual Isabel é signatária contou com 114 assinaturas de sociólogos, artistas, historiadores e ativistas que se opunham aos projetos de Lei de Cotas (PL 73/1999) e do Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000). O documento também foi uma reação às cotas raciais adotadas em instituições como UnB (Universidade de Brasília) e Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro).

Foi na sala de aula da Fundação Casa de Rui Barbosa, onde foi pesquisadora por 30 anos, e entre eventos acadêmicos, que Isabel se viu mudando de opinião: "O aumento massivo de estudantes negros nos ambientes acadêmicos [após as cotas] me fez perceber que antes havia, de fato, uma exclusão", afirma.

Abaixo, o depoimento concedido ao UOL e que foi editado para fins de clareza, em que a historiadora conta os motivos pelos quais assinou o manifesto e o que a fez mudar de opinião ao longo dos anos.

O estigma das cotas

"Reflito sobre a questão racial, pelo menos, desde a década de 1980, quando ingressei no movimento negro da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) no fim da minha graduação em ciências sociais. Acho que isso está ligado a minha própria identidade racial: sou parda e fruto de uma família mestiça.

A atuação no movimento negro, ainda embrionário naquela universidade, me aproximou do IPECN (Instituto de Pesquisas e Estudos da Cultura Negra) e passei a assistir a palestras da Lélia Gonzalez. Queria me informar sobre o assunto. Foi também por causa da UFRJ que soube sobre o manifesto contra as cotas raciais.

Em 2006, colegas da faculdade vieram até mim com argumentos que me pareciam bem elaborados e críticos. O principal ponto, ao meu ver, era de que as cotas seriam uma política excludente e que poderiam fazer com que os estudantes cotistas fossem estigmatizados.

Havia também essa ideia de que os estudantes cotistas baixariam o nível das universidades - já que a maioria deles vinha de escolas públicas -, de que eles teriam uma grande dificuldade para serem aceitos em empregos ou até mesmo que os pacientes não confiariam em um médico que tivesse sido cotista, por exemplo, como se aquela pessoa tivesse saído da universidade sem conhecimento algum. O único país em que ouvíamos falar sobre cotas eram os Estados Unidos, mas ainda parecia algo distante de nós.

Confesso que me deixei levar por esses argumentos e não fui atrás de outros pontos de vista, não fiz uma pesquisa sobre a lei que estava tramitando no Congresso. E assinei o manifesto sem fazê-lo. Cheguei até a questionar meus colegas se eles teriam convidado outras pessoas negras para participar do manifesto. Só depois me dei conta de que eu era "a" negra para eles.

Uma sociedade sem cor

Era como se o racismo estivesse bem camuflado em nosso dia a dia. Como se vivêssemos todos harmonicamente. Com as cotas raciais, surgiu o medo de que essa política desse início a uma "guerra", de que ela provocasse uma divisão, até então inexistente para muitos. As cotas raciais, seriam, nesse contexto, um divisor de águas em nossa história: o que era camuflado se tornaria escancarado.

Uma das questões práticas que mais me faziam duvidar da efetividade da política era a maneira como ela definiria a cor dos candidatos. Não estava óbvio para mim e nem para todos aqueles que assinaram o manifesto comigo. Parecia não haver um critério definido. Afinal, quem seria negro no Brasil?

Desabafei sobre isso na revista Insight de Inteligência daquele ano, antes mesmo de me apresentarem o manifesto. Não me parecia fazer sentido analisar traços fisionômicos e origem familiar dos candidatos para definir se ele seria negro (preto ou pardo), já que o Brasil era uma mistura de cores. Qualquer um poderia se autodeclarar negro ou indígena por conta dos seus antepassados, e quem iria dizer que era uma mentira?

Cresci em uma família com diversas variações de cores. Eu nunca fui branca e, em meus documentos, sempre constei como parda. Era chamada de neguinha, moreninha, cabocla, bugrinha e índia na infância. E, ao meu ver, isso nunca foi algo que me discriminava.

No entanto, meu pai, Crispiano Lustosa, pensava diferente. Lembro que ele sempre dizia para mim e meus doze irmãos que, sem estudo, não seríamos nada - afinal, éramos negros e pobres. A gente achava engraçado, porque todos nós tínhamos diferentes cores de pele e, ainda assim, a mesma identidade racial.

A chegada dos primeiros cotistas

A ficha só caiu na sala de aula, quando eu era pesquisadora da pós-graduação em memória e acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa. Circulando entre uma universidade e outra, passei a enxergar as cotas a partir de outra perspectiva. O aumento massivo de estudantes negros nos ambientes acadêmicos [após as cotas] me fizeram perceber que antes havia, de fato, uma exclusão.

Mesmo contrária à política, permiti-me ouvir o outro lado. Acompanhei pesquisas ao longo desses anos sobre ações afirmativas e vi como todas comprovaram que o nível das universidades não caiu, muito pelo contrário. As cotas resgataram pessoas que tiveram um ensino básico debilitado e elas foram capazes de compensar o atraso acadêmico ao entrar na academia. São inúmeras as pesquisas que comprovam isso. Não era mais uma questão de opinião ou suposição.

O debate na sociedade também mudou. A temática racial foi se tornando mais constante nos meios de comunicação e defensores das cotas ganharam mais espaço para compartilhar seus pontos de vista. Penso que meu pai, de origem muito modesta, ficaria muito contente em ver como essa política está beneficiando as pessoas mais pobres.

Cota é só o primeiro passo

Apesar de ter mudado de ideia, não me arrependo de ter assinado o manifesto em 2006. Naquela época eu não tinha nenhum embasamento teórico sobre o assunto. Era o que eu pensava a partir das informações de que eu dispunha. Hoje penso que o fato de ter participado desse movimento e trazer essa perspectiva comigo foi algo positivo, que ampliou minha visão.

Os cotistas estão por aí, pensando, produzindo, tendo boas ideias, sendo excelentes profissionais - e as cotas não interferem no seu desempenho. Essa hipótese preconceituosa, ainda bem, caiu por terra.

Vejo as cotas como um primeiro passo, mas não o único rumo a uma reparação histórica devida às populações negras. Precisamos nos conscientizar sobre o preconceito introjetado em nossa sociedade. Nas classes menos favorecidas, as pessoas estão sendo sequestradas por uma agenda de preconceito contra homossexuais, mulheres independentes, negros. Precisamos nos atentar para isso.

Penso muito no meu neto, que é negro. Como vai ser a vida dele? Somos pardos, tenho a sensação de que em alguns momentos conseguimos "passar batido", mas e quem tem cabelo crespo e pele retinta? As cotas abrem o caminho para uma discussão necessária sobre o nosso próprio racismo."