Disputa por volta às aulas nos EUA ameaça de expulsão 20 mil brasileiros
Na última segunda-feira (6) o engenheiro brasileiro Jean Ribeiro, de 29 anos, teve que interromper seu trabalho em modelos computacionais nos quais estuda a aerodinâmica de aviões para tentar entender os meandros de uma decisão do governo de Donald Trump que, na prática, pode forçá-lo a deixar os Estados Unidos dentro de poucas semanas, muito antes do prazo de mais dois anos esperados para que ele conclua seu doutorado na Universidade da Califórnia, em Los Angeles (UCLA).
Ribeiro é um entre os cerca de 20 mil brasileiros que estudam nos Estados Unidos e podem ser diretamente impactados por uma alteração nas regras de visto acadêmico. Segundo o governo americano, quase 1,1 milhão de estudantes estrangeiros podem ser obrigados a deixar o país caso suas universidades não retomem as aulas presenciais.
As instituições resistem por causa do risco de contágio do coronavírus, que já matou 130 mil pessoas nos Estados Unidos. Mas o presidente americano Donald Trump, que disputa a reeleição em novembro e pressiona para reaquecer a economia, cobra publicamente a reabertura das universidades em agosto e setembro.
Ao tomar a decisão de expulsar do país estudantes estrangeiros em cursos ministrados remotamente, o governo americano coloca as universidades e escolas diante de um dilema: ou retomam as aulas apesar do risco sanitário ou mantêm as medidas contra a pandemia e perdem seus alunos estrangeiros, que chegam a representar cerca de 40% do total de estudantes em universidades de renome como MIT ou Yale.
"Se voltarem às aulas normalmente agora vai ser crítico, porque serão milhares de alunos fechados em prédios com ar condicionado. O risco de contágio é enorme. Ao mesmo tempo, sem os alunos de fora, a universidade pode até quebrar, além de sermos mandados embora e perdermos tudo o que fizemos até aqui", resume Ribeiro.
Trump quer escolas abertas
Desde março, ele, seu orientador e seus colegas não vão ao laboratório aeroespacial em que fazem pesquisa, no campus da UCLA. Mas o trabalho tem continuado, com algumas limitações, de casa. O brasileiro desenvolve um estudo que pode ter impacto direto no modo como as asas de aeronaves são construídas.
Apenas em Ribeiro, a universidade já investiu US$ 120 mil dólares. Ao pensar no montante, o engenheiro procura se acalmar.
"Eu estou 20% ansioso e 80% confiante de que eles vão fazer algo para evitar que tudo se perca", diz Ribeiro.
Até agora, no entanto, a UCLA, assim como boa parte das universidades americanas, não soube dizer a seus alunos estrangeiros o que deve acontecer com eles nas próximas semanas.
"Eu vejo que acabamos ficando no meio de um jogo político do presidente, que está tentando forçar uma reabertura", interpreta Ribeiro.
Na mesma segunda-feira em que as regras de migração foram alteradas, Trump tuitou: "ESCOLAS DEVEM ABRIR NO OUTONO", em referência ao próximo semestre escolar.
Nas últimas semanas, o republicano têm sofrido sucessivos golpes em sua campanha de reeleição. A popularidade do presidente está abaixo de 40% e seu oponente, o democrata Joe Biden, já abre mais de 10 pontos percentuais de vantagem nas pesquisas nacionais. Com uma base de eleitores preocupadas com empregos e que expressa rejeição a imigrantes, o movimento em relação às universidades pode ajudá-lo politicamente.
Ao mesmo tempo, a ação ocorre em um momento em que os Estados Unidos enfrentam novo pico do coronavírus no país, com média de mais de 50 mil novos casos diários da doença na última semana (e mais de três milhões no total).
Os EUA perdem cérebros.
"Sempre soubemos que Trump não gostava de imigrantes. Prometeu construir o muro na fronteira com o México e seus centros de detenção ali não são conhecidos pelo respeito aos direitos humanos. Mas desde que a epidemia começou, ele se voltou contra a migração legal. Primeiro com a interrupção de emissão dos vistos de trabalho, e agora se voltando contra estrangeiros acadêmicos altamente qualificados", afirma Vitor Possebom, de 29 anos, que chegou nos Estados Unidos em 2016 para cursar seu doutorado em economia na Universidade Yale.
O misto de frustração, dúvidas e ansiedade levou Possebom a se somar a um movimento online para pedir que americanos façam pressão sobre seus congressistas para impedir que a nova regra, apelidada de banimento estudantil (student ban, em inglês), seja implementada. Nas redes sociais, professores universitários têm se disposto a criar cursos presenciais de fachada para tentar burlar a fiscalização do serviço de imigração.
Mais efetiva pode ser a medida tomada por Harvard e MIT. Na quarta-feira, dia 8, as duas universidades processaram a administração Trump contra a expulsão dos estudantes, que reputam ser uma medida "cruel" e "imprudente". Com o auxílio da procuradoria de Massachussets, onde estão localizadas, as instituições pedem que nenhum estudante seja retirado do país antes de uma decisão judicial final, o que poderia levar anos para ocorrer.
"Massachusetts é o lar de milhares de estudantes internacionais que não devem temer nem a deportação nem ser forçados a colocar sua saúde e segurança em risco para melhorar sua educação. Esta decisão é cruel, é ilegal e abrimos esse processo para pará-la", disse Maura Healey, procuradora-geral, em um comunicado à imprensa.
Possebom espera conseguir permanecer no país pelos próximos dois anos, período no qual concluirá seu doutorado. E só.
"Quando cheguei aqui, há quatro anos, eu pretendia construir minha carreira acadêmica nos Estados Unidos. Nos últimos tempos, essa movimentação contra imigrantes me faz pensar que não vale a pena ficar, não há segurança jurídica. Não pode ser assim: se o presidente for razoável, eu toco minha vida. Se não, posso ter que largar tudo e sair em três semanas", diz Possebom, que afirma ter ficado em choque quando recebeu a notícia.
"É uma enorme sensação de impotência. Não vou ficar aqui, quando terminar o doutorado, meu plano é voltar para o Brasil."
Para o especialista em migração Leonardo Freitas, CEO do escritório de advocacia migratória Hayman-Woodward, ao tomar essa decisão, o governo americano aceitou o risco de sofrer uma evasão de cérebros.
"O país que historicamente é um polo de atração de grandes mentes começa a dilapidar esse patrimônio intelectual", afirma.
A possível expulsão dos estudantes é mais uma das medidas a desagradar as grandes empresas de tecnologia do Vale do Silício, na Califórnia. Elas já se insurgiram contra as limitações de vistos de trabalho, argumentando que não podem se fiar apenas nos trabalhadores americanos para obter profissionais com as habilidades que o negócio demanda. Agora, enxergam nesse novo ato uma possível redução na formação de mão de obra especializada.
Estudar ou viver nos Estados Unidos?
De acordo com Freitas, além de fomentar a reabertura da economia, a medida tinha mais dois objetivos.
O primeiro seria reduzir a presença chinesa em território americano. Hoje, a China é a origem de 34% dos estudantes estrangeiros nos Estados Unidos — quase 400 mil pessoas. O governo americano, que já vivia há anos uma guerra comercial com a China, tem culpado o país pela dimensão da pandemia global.
Além de afirmar que os chineses omitiram dados sobre o coronavírus, altos funcionários da gestão Trump chegaram a acusá-los de ter produzido artificialmente a cepa, em um ataque biológico contra os americanos e o restante do mundo. Isso jamais foi provado, mas ataques contra a China têm se mostrado populares entre o eleitorado trumpista.
O segundo objetivo seria impedir a exploração de uma brecha nas regras migratórias do país. Nos últimos cinco anos, de acordo com Freitas, o governo americano começou a perceber que vistos acadêmicos como o F-1 passaram a ser usados por estrangeiros para efetivamente fixar residência permanentemente nos Estados Unidos e não apenas para estudar por um período limitado de tempo.
Quando se mudou para os Estados Unidos, há 4 anos, a paranaense Simone Rohde entrou no país com visto de turismo. Antes que ficasse irregular, ela se matriculou em um curso de inglês e alterou seu visto para o F-1, de estudante.
Desde então, Simone já fez também um curso tecnólogo em administração e agora estuda negócios.
"Eu vim pra ficar mesmo e tenho procurado meios legais de fazer isso, quero fazer tudo certinho para conseguir a residência permanente. Então quando vi essa notícia, praticamente um convite pra gente se retirar, fiquei desesperada. As opções vão estreitando pra gente. Se minha escola não reabrisse, eu teria que mudar de cidade em busca de outra opção pra poder ficar", afirma Simone, que paga US$ 6,5 mil dólares por ano à instituição de ensino que garante à ela e ao marido o visto para permanecer em Massachussets.
"Existem várias escolas de inglês ou de cursos profissionalizantes na Flórida e em Massachussets que se especializaram em trazer brasileiros para cá dessa maneira e viraram alvo do serviço de imigração", explica Freitas.
Simone, no entanto, afirma estar aliviada porque sua escola já informou que retomará 100% das aulas presenciais no próximo semestre.
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