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Maus ensinamentos do Mestre Cuca Brasil

Jason Redmond/AFP
Imagem: Jason Redmond/AFP
Guilherme Perez Cabral

04/09/2017 04h00

Concordo, plenamente. Se não gosta do programa, não precisa assistir. É só mudar de canal. Eu, confesso, assisti alguns episódios da competição culinária. Cozinheiros amadores cozinhando sob pressão e avaliados por três chefs renomados. Ao vencedor, o troféu de mestre cuca Brasil, mais um monte de prêmios anunciado repetidamente pela apresentadora.

Me senti mal, um pouco chocado com o que vi. O Mestre Cuca Brasil dá sinais claros de que a humanidade anda muito mal. Explico. Faço minha sociologia de competição culinária televisiva.

Os chefs renomados, certamente, cozinham bem, tratam os alimentos como ninguém, mas, na televisão, dão um péssimo exemplo de como lidar com seres humanos. São grosseiros, agressivos, arrogantes e impacientes. Falam o tempo todo da arte de cozinhar, dos sabores, aromas, cheiros e cores, misturas e combinações. Enquanto isso, fritam os participantes.

Assisti a avaliações dos pratos pelos chefs. Sessões de humilhação. Quanta agonia, quanta tensão. No silêncio que precede o esporro, o participante treme Coloca o prato preparado na bancada. Os jurados se aproximam, um por vez, olham para a comida, ora com cara de desdém, ora com cara de nojo mesmo, mexendo com o garfo como se separasse um inseto morto do bolo de arroz podre.

Saiu no jornal que o Brasil pode voltar ao mapa da fome da ONU, que, por aqui, 40% das crianças e jovens com até 14 anos vivem com menos de meio salário mínimo por mês, que são mais de 7 milhões de pessoas sem ter o que comer, e o cidadão com gravata borboleta olha para a comida com cara de nojo. Não pode.

O jurado experimenta e fala que está horrível. Detona o cozinheiro amador. A vieira não está no ponto certo. O risoto está sem sal. Gente, eu nem sabia que existia um bicho chamado vieira. Quanto ao participante, não é profissional, fez o melhor que pode. E dá-lhe pancada. O sujeito é humilhado, chora e depois pede desculpa! Teve uma vítima que se indignou e questionou. Foi comida viva pelos jurados.

Um dos chefs explicou, certa vez: também passamos por isso quando começamos... A cozinha de um restaurante chique funciona assim, é muita pressão, o tempo é contado, o cliente rico e exigente, você precisa servir com precisão, blábláblá.

A explicação tem lá sua razão. Se seu “testemunho” de humanidade é a agressividade, é de se esperar que você “hospede” dentro de si a agressividade também. Paulo Freire fala, nesse sentido, que “Raros são os camponeses que, ao serem ‘promovidos’ a capatazes, não se tornam mais duros e opressores de seus antigos companheiros do que o patrão”.

Não precisa, porém, ser assim. A lembrança ruim do desrespeito pode nos abrir um novo horizonte. O chef podia fazer diferente. Tratar o outro bem, respeitosamente. Só isso (ainda que não dê audiência).

O programa de competição culinária reflete e revive nossa falta de respeito com o outro, nossas prioridades equivocadas, nossa alienação. Não resolve muita coisa mudar de canal ou desligar a televisão.