O desafio da formação dos que só escutam as próprias verdades
O tema da redação do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) 2017, de que muito se falou na semana passada, foi “Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil”. Cabia ao estudante redigi-la, a partir de alguns textos motivadores – entre eles, um trecho do EPD (Estatuto da Pessoa com Deficiência), a Lei nº 13.146/2015 –, apresentando proposta de intervenção que respeitasse os direitos humanos.
Num cenário em que conteúdos ensinados, muitas vezes, circunscrevem-se ao que cai em concurso e vestibulares, o tema é bem-vindo. Mesmo as escolas lucrativas e cursinhos, para atrair consumidores, são forçados a rever apostilas e conferir alguma atenção às pessoas com deficiência e aos temas de direitos humanos. Afinal, cai na prova.
Desafios da educação de surdos. Pensei sobre o que escreveria. Basicamente, o respeito aos direitos já previstos em textos legais. Em suma, coisas que deveriam ser aprendidas e praticadas na escola e no nosso dia a dia.
Seria importante começar com uma definição. Tem um Decreto Federal que ajuda nessa tarefa (seu número é 5.626/2005, mas não precisa decorar). De acordo com ele surda é a pessoa que, por ter perda auditiva, interage com o mundo por meio de experiências visuais, em especial a Libras (Língua Brasileira de Sinais).
A perda auditiva, evidentemente, não deve acarretar a exclusão e segregação da pessoa. Na escola, ela deve estar junto com todo mundo, cada um com suas deficiências e diferenças, reconhecendo as próprias e contribuindo para a superação das dos demais. É o que prevê, aliás, a LDB (Lei de Diretrizes e Bases).
E complementa o EPD, num trecho que o Enem preferiu omitir: é dever não só do poder público mas também da escola privada disponibilizar professores para o atendimento educacional especializado, intérpretes da Libras e profissionais de apoio. Tudo para permitir a plena comunicação e interação. E tudo isso sem a cobrança de qualquer valor adicional.
Fundamental, ainda, destacar que a surdez e outros impedimentos em funções e estruturas do corpo (físicos, mentais, intelectuais, sensoriais) só configuram uma deficiência por conta de um fator externo. Na Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e no EPD, fala-se em barreiras urbanística, arquitetônica, tecnológica e, ressalto, a “atitudinal” (isso, a atitude do outro). Somada ao impedimento, é principalmente ela, a barreira socialmente imposta, que obsta a participação plena da pessoa na vida social.
Noutras palavras, não poderia faltar na redação o reconhecimento da parcela de responsabilidade (a maior) da sociedade na configuração das deficiências.
Concluiria, nesse sentido, dizendo que o desafio maior, aqui, não tem a ver propriamente com a pessoa surda (ou com outras deficiências). Reside, sim, na superação dos gravíssimos impedimentos éticos e cognitivos dos que não se enquadram no conceito legal de deficiência.
Falo das pessoas tomadas das piores deficiências, emboloradas de ignorância, preconceito, descaso em relação ao outro. Pessoas que acreditam ouvir, ver. Porém, não escutam nada além das próprias verdades. Não enxergam um palmo na frente. Pessoas que acreditam se locomover, mas estão paradas há tempos no mesmo lugar.
São um alvo central de proposta de intervenção, como a exigida no Enem. Proposta que, lembrando – apesar de autorizado o desrespeito, por decisão da Carmen Lúcia –, deve sempre respeitar os direitos humanos. Deve respeitá-los mesmo quando lida com a gente que insiste em violá-los. O desafio é enorme, sem dúvida.
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