As lúcidas lições de Belchior
Quero desejar, antes do fim,
pra mim e os meus amigos,
muito amor e tudo mais;
que fiquem sempre jovens
e tenham as mãos limpas
e aprendam o delírio com coisas reais
(...) Não tome cuidado comigo,
que eu não sou perigoso:
- Viver é que é o grande perigo (Belchior)
Dezembro chegou, avisam as lichias na seção de hortifruti. Mês de revisão e autocrítica. Revendo o ano de retrocessos, voltas ao passado, tenho certo que o que nele ouvi e vivi de mais original, completou quarenta anos no ano passado. Seu autor morreu em abril, aos 70 anos. A obra, Alucinação, de 76. O artista, Belchior.
Só nasci em 1981. Do rapaz latino-americano, só guardava na cabeça até a segunda estrofe, a do antigo compositor baiano que dizia tudo é divino, tudo é maravilhoso. Não sabia que era o Caetano. Nem havia atentado para a descrença (“nada é divino / nada, nada é maravilhoso”) do cantor recolhido, caminhando seu caminho, ouvindo discos, conversando com pessoas. Papo, som, dentro da noite.
Depois que morreu, só então, ouvi atentamente o disco todo. Cortante, profundo, de um justificado inconformismo resignado. Além do rapaz latino-americano, Velha roupa colorida, Como nossos pais, Sujeito de sorte, Como o diabo gosta, Alucinação, Não leve flores, A palo seco, Fotografia 3x4 e Antes do fim.
O real experimentado sem teorias, fantasias, oba oba, nem tinta no rosto, nua e cruamente, vem desprovido de razão. A alucinação de Belchior é suportar o dia a dia. O delírio é a experiência com coisas reais.
Vem, também, cheio de horrores, encarnados mais na voz rouca do que na letra propriamente dita. Esta nos alerta: “não se preocupe, meu amigo, é somente uma canção / a vida, a vida realmente é diferente / Quer dizer, ao vivo é muito pior”. Assim falando, sabe o nosso cantor, é de se pensar que o desesperado era moda em 76. Reconhece: “ando mesmo descontente / Desesperadamente, eu grito [e canta] em português”.
Está em todo o disco o desejo desesperançado de revolucionar. Repete: “Amar e mudar as coisas / Me interessa mais. As mudanças, no entanto, não aconteceram como esperado. Tudo poderia ter mudado, sim (...) nossa esperança de jovens não aconteceu, não, não...”
Mudanças aconteceram, sim e muitas, muito mais para reafirmar o mesmo. A contradição é esclarecedora. “No presente, a mente, o corpo é diferente / E o passado é uma roupa que não nos serve mais”. Porém, no fim das contas, abaixo da casca fina, apesar de tudo o que foi feito, “Ainda somos os mesmos / E vivemos / Como os nossos pais”.
Há um sentido de responsabilidade: tomar partido cantando. Musicar e denunciar o que preferem não ouvir. “Não me peça que lhe faça uma canção como se deve / Correta, branca, suave, muito limpa, muito leve / Sons, palavras, são navalhas e eu não posso cantar como convém / Sem querer ferir ninguém”. Belchior quer que o canto torto, “Feito faca, corte a carne de vocês”.
Entre adaptação e resistência, duas faces da educação, atribui ao diabo a lição adorniana: resista! “A única forma que pode ser norma / é nenhuma regra ter / é nunca fazer nada que o mestre mandar / Sempre desobedecer / Nunca reverenciar”.
Aos haters, graduados de rede social, em versos, o melhor e mais atual desdém da música brasileira: “Mas se depois de cantar você ainda quiser me atirar / Mate-me logo, à tarde, às três, que à noite tenho um compromisso / E não posso faltar por causa de você”.
Apesar de tudo, em Alucinação, Belchior se considera um sujeito de sorte. Não é ironia. Lucidez e agudeza no olhar são, ainda, imprevisíveis e casuais.
Com ele: “Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte / Porque apesar de muito moço me sinto são e salvo e forte / E tenho comigo pensado Deus é brasileiro e anda do meu lado / E assim já não posso sofrer no ano passado / Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro / Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro...”
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