Enem: 'Estado reconhece minha existência', diz trans que usará nome social
"Será que vou conseguir a tão sonhada vaga?", "será que minha nota é suficiente?" e "tenho estudado o bastante?" são algumas dúvidas que surgem na cabeça de todo participante do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Os desafios da prova, considerada a principal porta de entrada ao ensino superior no país, se multiplicam para a população trans.
Para a produtora-chefe de conteúdo Sanara Maria dos Santos Araújo, 22, uma das principais preocupações ao menos já não vai existir: ser chamada pelo seu nome de registro.
"É o Estado reconhecendo minha existência. Receber uma prova com meu nome é uma valorização da minha existência", conta.
O nome social até 2013 era um desafio para pessoas trans conseguirem realizar a prova. Em 2014, o direito passou a ser garantido pelo MEC (Ministério da Educação).
No primeiro ano da mudança, 94 pessoas fizeram o pedido. De 2019 até o ano passado, o número saltou 450%. Os dados do Enem 2021 ainda não foram divulgados pela pasta.
A pesquisadora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) Brume Dezembro Iazzetti explica que o nome social é um direito para o nome ser respeitado. "É uma reivindicação do movimento trans desde os anos 90 e aparece primeiro no SUS [Sistema Único de Saúde] nos anos 2000, depois nas universidades", diz.
Em 2018, o STF (Supremo Tribunal Federal) garantiu também que pessoas trans entrassem com o pedido do nome social pelo cartório, sem a realização de cirurgia de confirmação de gênero. O processo, no entanto, ainda continua difícil e o valor pode chegar até R$ 1.500.
Nos planos de Sanara, no início do ano que vem, ela será uma das novas alunas da UFABC (Universidade Federal do ABC). Com a nota do Enem, ela quer conseguir uma vaga na instituição e aumentar a porcentagem de pessoas trans dentro das universidades.
Segundo pesquisa feita pela Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), estudantes trans representam apenas 0,2% nas universidades federais.
Quero cursar planejamento territorial. Adoro falar sobre territórios, pensar em questões políticas, sociais, que envolvem os espaços e também incluir a população trans nesse assunto."
Sanara Maria dos Santos, produtora-chefe de conteúdo
Além de garantir o uso do nome social, o Enem possibilita que os participantes escolham o banheiro que irão usar e o pronome pelo qual querem ser chamados.
"Nem tudo são flores, porque o direito pode ser garantido, mas você depende que os fiscais da prova chamem aquela pessoa pelo nome correto. Ainda ouço relatos que envolvem situações vexatórias", afirma Brume.
Nome retificado
A artesã Agunna Valim, 22, lembra bem como foi fazer o Enem 2017. Na época, ela estava no último ano do ensino médio e no processo de reconhecimento como uma pessoa trans.
Não fui nada bem, foi desgastante, não só pela pressão da prova, mas porque hoje reconheço que faltou representatividade,. Fui chamada pelo meu nome morto."
Agunna Valim, artesã
Dois anos depois, em 2019, conseguiu retificar seu nome no cartório e decidiu que agora vai fazer o Enem para conseguir uma vaga no curso de farmácia.
A escolha do curso não foi por acaso. Além de continuar trabalhando com produtos fitoterápicos e cosméticos, Agunna quer contribuir de alguma forma com questões que a impactam diariamente.
"Nós fazemos tratamento hormonal que não são feitos para nós, por exemplo, e eu quero incluir a população trans nessas discussões também", explica. Para ela, a universidade não significa apenas um diploma, mas a ocupação de um espaço que é negado "para corpos como o meu".
A artesã conta com o apoio do coletivo TransEnem, que oferece aulas —agora na pandemia online também— de preparação para o exame.
Se eu tentasse estudar sozinha, não conseguiria. O coletivo dá esse 'up'. Tenho professores que me representam e uma carga horária que atende minha realidade."
Agunna Valim, artesã
Desafios para o ensino superior
Para chegar ao ensino superior, uma pessoa trans enfrenta inúmeros desafios. Segundo dados da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), 70% das pessoas trans e travestis não concluíram o ensino médio. Um outro levantamento, feito pela ONG Transgender Europe, apontou que o Brasil é o país que mais mata essa população.
O principal desafio é a violência, segundo Brume. "Não é só na escola, mas essa pessoa sofre violência na saúde e na rua e isso vai dificultar que ela termine a educação básica", diz a pesquisadora.
Ela diz que muitas pessoas trans conseguem concluir o ensino médio, porque no período escolar ainda não concluíram seu processo de reconhecimento.
Para a professora e integrante do IBTE (Instituto Brasileiro de Transformação pela Educação) Glendha Rocha, é uma forma de resistência para a população trans continuar realizando o Enem e ocupando outros espaços na sociedade.
"Temos um presidente que tenta excluir a qualquer momento nossa existência, que pode a qualquer momento retirar nossos direitos, e uma sociedade que deixa as pessoas constrangidas", afirma Glendha.
Ela enfatiza, assim como Brume, que faltam políticas afirmativas para essa população. "Fui a primeira pessoa a entrar com processo na UERN [Universidade do Estado do Rio Grande do Norte] para usar nome social dentro da universidade e sofri muito, porque as pessoas não querem que aquele lugar seja seu", conta.
Brume conta que em seu mestrado levantou que 34 instituições públicas possuem algum tipo de ação afirmativa para entrada de pessoas trans, "sendo a maioria exclusivamente em cursos de pós-graduação".
"Apenas seis contam com políticas afirmativas na graduação. Na prática é um processo extremamente burocrático, que exige uma série de questões, e as pessoas não conseguem acessar as universidades por essas políticas afirmativas."
Das unidades levantadas pela pesquisadora, 33 são universidades públicas e uma é o IFBA (Instituto Federal da Bahia).
Há ainda um complicador estrutural. A expectativa de vida no Brasil é, em média, de 75 anos, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Mas, para uma pessoa trans, é de apenas 35 anos, segundo a União Nacional LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais).
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