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Kit para ensino domiciliar é vendido pela internet por mais de R$ 1,5 mil

Projeto que regulamenta ensino domiciliar foi aprovado na Câmara e está em análise no Senado - RyanJLane/Getty Images
Projeto que regulamenta ensino domiciliar foi aprovado na Câmara e está em análise no Senado Imagem: RyanJLane/Getty Images

Ana Paula Bimbati

Do UOL, em São Paulo

30/05/2022 04h00

Empresas têm vendido na internet kits de ensino domiciliar para famílias que têm interesse na modalidade. Os materiais destinados para crianças e adolescentes, de diferentes etapas escolares — da educação infantil ao ensino médio —, saem mais de R$ 1.500.

O projeto que regulamenta a modalidade foi aprovado pela Câmara de Deputados, há duas semanas, e agora está em análise pelo Senado. O tema é apoiado por grupos conservadores e pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) — chegou a ser questão prioritária do governo no ano passado para área da educação.

Um dos sites visitados pela reportagem foi do Instituto Ave Maria Homeschooling. A empresa oferece kits de educação infantil para crianças de 3, 4 e 5 anos, ensino fundamental e médio.

"Livre de ideologias, mobilidade total e tendência educacional no mundo" são algumas das características citadas pela empresa na descrição do produto.

Especialistas consultados pelo UOL afirmam que a venda de produtos como esses é "preocupante", já que podem promover uma "educação negacionista da ciência e fundamentalista".

"Muitos grupos de defesa da educação domiciliar são cristãos. Até aí, a própria possibilidade de existência de escolas confessionais já permite uma educação religiosa. O que é preocupante é a possibilidade de isso ocorrer no âmbito familiar e longe das regulações e contrapesos do espaço público", afirma Andressa Pellanda, a coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

O Instituto Ave Maria oferece duas opções de pagamento: à vista e parcelado. Na primeira opção, as famílias pagam R$ 1.995. Já na outra, o valor total vai para R$ 2.256,97. Os preços são os mesmos para outras etapas — apenas o ensino médio não tem o preço especificado.

Já na página da Comunidade Educalar, as famílias têm a possibilidade de contratar um plano anual no valor de R$ 99 por mês ou fazer uma contratação mensal por R$ 197.

Nesse esquema, as famílias terão mentoria e clube de leitura online, "acesso imediato a compra do material do sistema Mackenzie de ensino" e uma plataforma de apoio.

O Instituto Ave Maria oferece ainda descontos para famílias que contratarem para mais filhos — 50% para o segundo filho e 75% para o terceiro filho.

O UOL procurou as empresas por dois dias, mas não obteve contato.

A pauta do ensino domiciliar tem o apelo de famílias conservadoras, que são contra, por exemplo, a discussão de educação sexual e diversidade nas escolas. A venda de produtos sem aprovação do MEC (Ministério da Educação) alerta também para a falta de fiscalização de materiais alinhados a BNCC (Base Nacional Comum Curricular), que deve guiar as escolas sobre os conteúdos ensinados aos estudantes.

"Estamos chancelando um modelo que vai ensinar criacionismo para as crianças e tudo isso respaldado pelo estado brasileiro", afirma Olavo Nogueira, diretor-executivo do movimento Todos pela Educação.

Uma terceira empresa tem vendido e-book no formato de curso para os pais interessados no homeschooling. O valor, atualmente, é de R$ 69,90, mas a empresa alerta que o preço pode ser alterado "a qualquer momento dependendo da nossa demanda para atender a todos". "Uma vez alterado, não praticaremos mais o preço anterior".

Famílias favoráveis à educação domiciliar comemoram votação da regulamentação do homeschooling na Câmara - Pedro Ladeira/Folhapress - Pedro Ladeira/Folhapress
18.mai.22 - Famílias favoráveis à educação domiciliar comemoram votação da regulamentação do homeschooling na Câmara
Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress

'Escolas informais'

No projeto aprovado na Câmara, o texto prevê que o homeschooling fica autorizado desde que os responsáveis comprovem ensino superior ou tecnológico. Caso os pais não tenham, a família pode recorrer a um preceptor com esses critérios.

"Isso vai permitir o surgimento de um mercado de escolas informais e uma desvalorização da carreira docente", afirma Nogueira. O projeto não prevê outros critérios, além da comprovação de escolaridade.

Andressa, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, afirma que a ideia do preceptor é "o indicador maior do lobby de um mercado da educação domiciliar".

"O direito à educação é colocado em risco mais uma vez, pois se defronta com um interesse privado que deverá seguir o que os clientes, ou seja, pais, mães e responsáveis, demandarem, mesmo que seja diferente do que determina a legislação para a educação", afirma.

Além da obrigatoriedade do ensino superior ou tecnológico, o projeto inclui regras como a matrícula obrigatória do aluno em alguma instituição de ensino e que o estudante seja avaliado anualmente.

Especialista defende regulamentação para 'casos excepcionais'

Na avaliação do diretor-executivo do Todos pela Educação, a regulamentação deve acontecer, mas apenas para casos excepcionais. "Em vez de ter uma legislação para quem precisa do homeschooling, nós temos uma legislação para quem quer", afirma.

Filhos de profissionais do circo, famílias itinerantes ou alunos que vivenciaram bullying extremo são alguns exemplos de casos excepcionais, segundo Nogueira.

Não é o momento de falar sobre homeschooling. Inacreditável que depois de dois anos de pandemia, com escolas fechadas e impactos brutais, a gente esteja investindo tempo nesse debate. Esse é um contrassenso enorme"
Olavo Nogueira, diretor-executivo do movimento Todos pela Educação.

Não há previsão para o tema entrar em discussão no Senado. O presidente da Comissão de Educação, o senador Marcelo Castro (MDB-PI), afirmou que o assunto será discutido com "toda sociedade" enquanto ele estiver na frente da comissão.

Castro avaliou ainda que o projeto não tem "urgência". "A prioridade é outra. Melhorar a qualidade do ensino e diminuir a defasagem no aprendizado", escreveu em suas redes sociais.

Se a proposta que veio da Câmara for aprovada pelos senadores, vai seguir para sanção do presidente. Se o Senado fizer mudanças, o texto volta para os deputados.