Por que escolher a escola pode não ser uma boa opção?
Todo início de ano, muitas famílias brasileiras de classe média e alta começam a selecionar em qual escola seus filhos vão estudar. Na rede pública, a possibilidade de escolha é reduzida. Em diversos Estados, como São Paulo, a matrícula dos estudantes da rede pública é setorizada. Ou seja, cada criança ou jovem tem de estudar em uma escola perto de sua moradia. Diante disso, cabe a pergunta: as famílias não deveriam ter mais poder de escolha sobre onde seus filhos estudam?
Muitos pais e mães (como Lígia, veja a história dela clicando aqui) que são contrários às regras da setorização da matrícula tentam burlar o sistema. Fazem isso usando endereços de conhecidos para evitar que seus filhos sejam matriculados em escolas com má reputação.
Esse tipo de polêmica não acontece só no Brasil. A França, onde o local da residência também define o colégio do aluno, registrou, recentemente, protestos de mães de origem africana nas periferias de Paris em busca de livre matrícula para seus filhos. Elas reclamam que, hoje, suas crianças só convivem com outros imigrantes na sala de aula, e isso perpetua a segregação e a alienação. Com esse sistema, o governo está impedindo a integração de seus filhos com a cultura e a sociedade francesas. No último Pisa, (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), que avalia alunos de 15 anos em 65 países, a França ficou entre os países com mais desigualdade entre seus estudantes, ou seja, há uma grande distância entre as escolas de melhor e de pior desempenho, que concentram maior número de alunos imigrantes.
Para resolver o problema, alguns dizem que o ideal seria dar autonomia para que cada família pudesse optar pelo seu local de estudo. Por esse modelo, deste modo surgiria uma competição saudável e natural entre as escolas pelos alunos, e aquelas menos preparadas acabariam obrigadas a melhorar sua qualidade – ou a fechar suas portas. Assim, pela competição, se chegaria à solução.
Aqui no Brasil, temos de analisar ideias como esta com aprofundamento nas complexidades do nosso cenário. Isto é, precisamos levar em conta as condições de funcionamento das escolas, o seu local, as suas culturas e história.
Um ponto a considerar é que as regiões com menos condições de infraestrutura, segurança, saúde etc. abrigam as escolas mais precárias. É o que apontam estudos - saiba mais clicando aqui. Com esse modelo de competição entre as escolas, chamado de "quase-mercado", as mais vulneráveis seriam ainda mais penalizadas, pois receberiam menos recursos financeiros e, assim, perpetuariam a desigualdade educacional no país.
Outro problema da chamada livre matrícula é a escolha dos alunos pelas escolas mais populares. Pela lei, a rede pública não pode adotar procedimentos para selecionar estudantes, a não ser nos estabelecimentos federais e militares. Mas, na prática, critérios, muitas vezes ocultos, são utilizados para escolher quais alunos entram nas melhores escolas.
Um estudo da Fundação Tide Setubal e do Cenpec descobriu que, ao analisar os pedidos de matrícula, as escolas avaliam questões como as notas e o comportamento dos alunos e as características socioeconômicas de suas famílias. Dessa forma, as escolas de maior prestígio tenderiam a evitar matricular os alunos tidos como "problemáticos". E tais alunos seriam enviados para colégios de menor atratividade, perpetuando, mais uma vez, a perversa associação de regiões pobres e resultados escolares ruins.
Há sinais claros do papel marcante da região da escola e de sua cultura e história em discussões como esta. Por isso, as ações dos governos em Educação devem considerar as características de cada local e ouvir a comunidade escolar para, assim, oferecer uma educação de qualidade a todos, independente do endereço. Esse é um passo fundamental para que o Brasil enfrente suas desigualdades de forma propositiva e forme todas as nossas crianças, adolescentes e jovens para que possam participar da sociedade de forma cidadã.
Uma escola pública para ser de qualidade precisa ser heterogênea, ou seja, é aquela que reconhece e respeita as pessoas com deficiência, a diversidade de gênero, de raça e de nível socioeconômico. Quando isso ocorre, todos avançam e as desigualdades diminuem.
Maria Alice Setubal
Maria Alice Setubal, a Neca Setubal, é socióloga e educadora. Doutora em psicologia da educação, preside os conselhos do Cenpec e da Fundação Tide Setubal e pesquisa educação, desigualdades e territórios vulneráveis.