Como a educação integral pode formar várias Rafaelas Silva

Maria Alice Setubal

Maria Alice Setubal

  • Geraldo Bubniak/AGB

    O caso da judoca Rafaela Silva é exemplar para reafirmarmos que o local onde as pessoas vivem importa

    O caso da judoca Rafaela Silva é exemplar para reafirmarmos que o local onde as pessoas vivem importa

Rafaela Silva, nosso primeiro ouro nos Jogos Olímpicos do Rio, tornou-se um símbolo do potencial brasileiro: mulher, negra, nascida na Cidade de Deus. Sofreu inúmeros ataques racistas pelas redes sociais quando foi desclassificada nas Olimpíadas de Londres, o que a deixou deprimida a ponto de quase desistir de sua carreira. Em entrevista a jornalistas, a judoca declarou que espera que seu exemplo possa servir de inspiração para outras crianças brasileiras em situação de vulnerabilidade. "Se essa medalha puder mostrar para outras crianças pobres da favela que uma menina pode sair de lá e virar campeã mundial olímpica, estarei feliz", disse Rafaela.

Sua vitória foi amplamente comentada pela mídia a partir de diversas interpretações, que vão desde o elogio à disciplina militar, uma vez que ela é terceiro sargento das Forças Armadas, até sua superação individual pelo esporte. Alguns elogiaram a ascensão da atleta por sua própria força, enquanto outros relembravam que ela contou com bolsas do governo ao longo da carreira. Todas as interpretações podem ser consideradas verdadeiras, mas quero discutir aqui a importância dos projetos sociais no âmbito da educação para nossas crianças e adolescentes. Como argumentei no artigo anterior, o esporte tem o potencial de trabalhar diversas habilidades e valores fundamentais para a vida na sociedade contemporânea, e não deve se limitar às aulas de educação física nas escolas.

Rafaela frequentou desde a infância o Instituto Reação, organização da sociedade civil que oferece oficinas educacionais para crianças e adolescentes de 4 a 17 anos participantes do Programa Reação Escola de Judô e Lutas. A iniciativa tem como principal objetivo dar os subsídios necessários para o desenvolvimento de atletas de alto rendimento. As crianças e adolescentes desse programa participam de oficinas educacionais com o intuito de desenvolver suas habilidades sociais, pessoais, produtivas e cognitivas, além de ampliar seus repertórios culturais. Lá, elas desenvolvem projetos interdisciplinares dentro de quatro áreas de atuação: vida cidadã, meio ambiente, arte e cultura e corpo e movimento.

Essa formação de Rafaela enquadra-se no âmbito de uma educação integral, que tem como foco desenvolver a criança ou jovem na sua integralidade -- ou seja, nos seus aspectos cognitivos, físicos, emocionais e sociais. Ao pensarmos nos melhores modelos de educação para os jovens brasileiros, não basta defendermos apenas a ampliação da jornada escolar, com escolas funcionando em período integral -- ainda que esse ponto seja muito importante. É preciso lutarmos por uma educação que veja o desenvolvimento do aluno como um todo, focando não apenas no aprendizado das disciplinas escolares mas também em suas habilidades sociais, pessoais e produtivas, sempre conectadas com os desafios do século 21. Nesse contexto, está o esporte.

O Cenpec tem defendido a educação integral nas suas diferentes modalidades e arranjos como um poderoso instrumento no enfrentamento de nossas enormes desigualdades educacionais. O caso de Rafaela é exemplar para reafirmarmos que o local onde as pessoas vivem importa. É fundamental a implementação de políticas públicas que levem em conta as regiões de alta vulnerabilidade social, como a Cidade de Deus, articulando-se a políticas de saúde, educação, cultura, esportes e assistência social.

Segundo o Observatório do Plano Nacional de Educação, somente 15,7% das matrículas da rede pública de ensino no país são em escolas de tempo integral. Ampliar esta oferta é um dos principais desafios que o Brasil precisa superar. Mas não basta apenas ampliar o tempo que os estudantes ficam na escola. Uma educação integral de qualidade requer políticas que abrangem diversas áreas (como saúde, esporte e cultura), que sejam adaptadas a cada região, façam parcerias com outras iniciativas da sociedade civil e entendam a cidade como um espaço educativo, levando a educação também para fora da sala de aula.

A riqueza da educação integral está nas interações entre a escola, a família, a comunidade e a cidade. Ao lado das disciplinas convencionais ofertadas pela escola, encontram-se oficinas culturais, esportivas, lúdicas, socioeducativas, tecnológicas, etc., envolvendo grupos da própria comunidade, organizações sociais da cidade e espaços ou serviços públicos. Essas políticas podem nos revelar inúmeras Rafaelas que podem nos trazer não apenas o ouro nas Olimpíadas, mas o ouro na vida.

Maria Alice Setubal

Maria Alice Setubal, a Neca Setubal, é socióloga e educadora. Doutora em psicologia da educação, preside os conselhos do Cenpec e da Fundação Tide Setubal e pesquisa educação, desigualdades e territórios vulneráveis.

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