Repetir questões no Enem 2022 é precarização do exame, diz especialista
A proposta de novos coordenadores e diretores Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) de repetir questões no Enem 2022 fragiliza a prova nacional e pode ser entendida como mais uma consequência do desmonte do MEC (Ministério da Educação), segundo especialistas em educação ouvidos pelo UOL.
"Há algumas semanas, a gente teve o anúncio do novo Enem para 2024 por influência do CNE [Conselho Nacional de Educação]. Um exame mais sofisticado, atualizado ao século 21. Mas aí a decisão do Inep é precarizar até lá?", questiona Claudia Costin, diretora do Ceipe (Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais) da FGV.
Ontem (29), o UOL revelou que documento já enviado ao presidente do Inep, Danilo Dupas, sugere que as duas próximas edições do Enem (2022 e 2023) tenham questões de anos anteriores. O principal argumento é a escassez do BNI (Banco Nacional de Itens), que armazena as questões. A falta de novas opções, no entanto, não é uma surpresa. Antes e depois da aplicação da última versão do exame, em 2021, reportagens já mostravam o problema.
Costin, que também foi diretora de educação do Banco Mundial, criticou a falta de consulta a especialistas da área diante deste cenário. "É importante ouvir educadores, o Consed [grupo que reúne secretários de educação estaduais], a Undime [dos secretários municipais] e os especialistas em Educação sobre o que deve ser feito com o Enem até 2024."
O ex-presidente do Inep, Chico Soares, concorda. "Fazer isso sem que haja discussão ou um documento técnico é muito amadorismo. Não gosto dessa decisão [de repetir questões]", disse.
Segundo Soares, o BNI tem uma "dificuldade crônica", mas não é "desta forma" que será solucionada.
Repetir perguntas na edição do Enem 2022 vai transformar o ensino médio em uma luta para terminar todos os itens de múltipla escolha. O Enem deveria ajudar o ensino médio e não pautá-lo. Essa proposta vai totalmente contra a proposta do Novo Ensino Médio."
Chico Soares, ex-presidente do Inep
Procurado ontem pela reportagem para comentar a proposta, o Inep não se manifestou.
O Enem é a principal porta de entrada ao ensino superior no Brasil. Em 2021, a aplicação do exame ficou marcada por supostas interferências nas questões e por uma grande queda no número de inscritos de escolas públicas e não brancos.
A sugestão da mudança acontece em um momento em que o MEC está sem comando. Na segunda-feira (28), Milton Ribeiro foi exonerado do cargo de ministro, uma semana após a divulgação de áudios em que ele admite que prioriza a liberação de verbas da educação a prefeituras ligadas a dois pastores que não têm vínculo com o governo federal.
"Foi um pedido especial que o Presidente da República [Jair Bolsonaro] fez para mim sobre a questão do [pastor] Gilmar [Santos]", diz Ribeiro na gravação divulgada pelo jornal Folha de S. Paulo.
A proposta do Inep
O BNI é responsável por reunir todas as perguntas aprovadas que podem ser utilizadas no Enem. Para entrar no banco, as questões são elaboradas e, depois, testadas. Todo esse processo é técnico e demanda o envolvimento de pessoas capacitadas.
Na proposta enviada para Dupas, quatro gestores nomeados por ele —que assumiram seus cargos neste ano— afirmam que "considerando a possibilidade de reutilizar 4.680 itens" de outras edições, não haveria a necessidade de executar novos pré-testes de perguntas para as edições de 2022 e 2023.
Os gestores argumentam que a atualização do BNI é um processo "moroso, custoso, sigiloso e que demanda uma alta quantidade de mão de obra". Segundo servidores ouvidos pela reportagem, a aprovação da proposta depende apenas da aprovação de Dupas —ele já recebeu a minuta do edital do Enem com essa sugestão.
Para João Marcelo Borges, pesquisador do DGPE (Centro de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais), da FGV, a justificativa do órgão que o processo de atualização do banco é custoso e demorado é "inaceitável".
"O Inep precisa dar conta de manter um Enem confiável, adequado, com perguntas atuais, calibradas e pré-testadas, e, também, de desenvolver uma nova metodologia pro novo Enem", afirma o pesquisador.
Servidores mais antigos do Inep dizem que a proposta de repetir itens utilizados foi assinada por gestores sem experiência com o Enem. Todos eles foram nomeados por Dupas no início do ano após a pior crise do Inep —quando dezenas de funcionários pediram exoneração de seus cargos, alegando fragilidade técnica na gestão.
"Essas pessoas que assinaram a proposta não fazem parte do grupo de especialistas em avaliação da educação. Esse é um grupo grande no Brasil, tem tradução de estudo e acúmulo técnico", analisa a presidente do movimento Todos Pela Educação, Priscila Cruz.
A decisão de repetir questões, segundo Priscila, também cria um clima de insegurança sob o Enem.
O Inep faz parte de um desmonte técnico do governo Bolsonaro. É no MEC, no FNDE [fundo de desenvolvimento da educalção], no Inep. Não tem um grupo com pessoas preparadas, então eles colocam militares, pastores, que é o que eles têm, mas não é o bastante para a educação do Brasil."
Priscila Cruz, presidente do Todos pela Educação
A reportagem aguarda resposta do MEC. O espaço está aberto para atualizações.
Descredibilidade e prejuízo para alunos vulneráveis
Para Costin, repetir perguntas pode privilegiar alunos com mais acesso aos simulados do Enem e estudantes com acesso à internet. "É uma decisão ruim para os mais vulneráveis, porque a desigualdade educacional é grande, temos um abismo no acesso à tecnologia", explica.
Atualmente, todas as edições do Enem, com os gabaritos, estão disponíveis no site do Inep e em cursinhos espalhados por todo o país.
Priscila também aponta que a proposta "mina a confiança" não só em relação a prova, mas dos estudantes sobre as políticas públicas. "O estudante não vê esse governo lutanto por ele. O que esse governo comunica é o oposto: incompetência, ameaça de interferência", diz.
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