Governo processa servidor que avaliou projeto do PT: 'Decisão política'
O governo de Jair Bolsonaro (PL) processou um servidor do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) que escreveu um artigo que indicava resultados positivos de um programa de alfabetização lançado pelo PT (Partido dos Trabalhadores). No ano passado, Alexandre André dos Santos já havia reclamado que o instituto barrou a publicação do estudo. Oficialmente, o Inep nega.
Nesse estudo, Santos, servidor do instituto desde 2008, avaliava o Pnaic (Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa), lançado pelo governo Dilma Rousseff (PT). O artigo mostra que o programa trouxe melhorias no aprendizado. O autor afirma que não divulgou seu texto e "sempre respeitou o rito" —mas outra pessoa o fez. E, por isso, ele responde a um processo administrativo disciplinar e é alvo de ação na Justiça.
"Entende-se que foi violado o patrimônio jurídico do Inep, tanto pela utilização indevida de texto protegido por direitos autorais, bem como pelo uso sem autorização da logo do instituto", diz trecho do processo, obtido pelo UOL. O governo pede ainda uma indenização de R$ 20 mil e a retirada do texto da internet.
Santos diz que, após ter o artigo barrado, solicitou a "retirada da solicitação de publicação do estudo". No processo, esse pedido não é citado.
"O resultado do estudo demonstra que o Pnaic foi uma política eficaz e que aumentou o aprendizado. Por isso, vejo essa decisão [processo] como uma decisão política institucional contra a técnica e a ciência", afirma Santos.
Em nota ao UOL, o Inep informou que participa "ativamente" das publicações de artigos e documentos oficiais e que um comitê foi criado para "garantir a excelência no processo e resguardo institucional". "Destaca-se que não houve, em nenhum momento, a negativa sobre a publicação do artigo", diz o texto enviado à reportagem. "O artigo foi publicado em plataforma alheia ao Inep, com uso de logotipo, diagramação e numeração [...] do Inep."
Sobre o processo contra Santos, o instituto afirma que "toda manifestação acerca de qualquer processo formalmente instituído deve ocorrer nos autos" —ou seja, no âmbito judicial.
Para servidores, esse é mais um movimento de assédio e perseguição. No ano passado, mais de 30 funcionários entregaram seus cargos como forma de protesto contra a gestão de Danilo Dupas, então presidente do instituto, a poucos dias do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio).
Nesta semana, o MEC (Ministério da Educação) anunciou a saída de Dupas por motivos pessoais e nomeou para o cargo, de forma interina, Carlos Moreno, servidor do instituto. Moreno assume nesta segunda-feira (1º).
Além do Inep, o próprio MEC passa por uma das piores crises da sua história. Áudio revelado pelo jornal Folha de S. Paulo, em março, mostrou o então chefe da pasta, Milton Ribeiro, dizendo priorizar a liberação de verbas a prefeituras ligadas dois pastores a pedido de Bolsonaro.
Os dois líderes religiosos —Arilton Moura e Gilmar Santos não têm vínculo formal com o governo federal. Moura teria inclusive cobrado propina de prefeitos, segundo relatos.
Ribeiro pediu demissão uma semana após a divulgação da gravação. No mês passado, o ex-ministro e os dois pastores foram presos, mas receberam o direito de responder em liberdade um dia depois.
Vaivém
Inicialmente, as informações sobre o estudo de Santos fariam parte de uma publicação do Inep. Mas, desde maio do ano passado, ele enfrenta problemas com o artigo.
As equipes técnicas e avaliadores externos já haviam aprovado o texto. Um dos pareceres diz que o artigo "possui rigor científico no que se refere à apresentação de problema de pesquisa, fundamentação teórica, análises e discussões das análises".
O servidor chegou a receber um email, ao qual a reportagem também teve acesso, informando que a publicação estava agendada para 3 de maio. Dias depois, no entanto, o Inep disse que criaria um comitê para reavaliar o material.
No dia 6, em ofício enviado ao então presidente do instituto, Santos pede a retirada da solicitação para publicar o artigo. No documento, o servidor reafirma que seguiu "todo rito burocrático" e que desde 30 de abril de 2020 "vem tendo frustrada sua expectativa de dar publicidade" ao material.
Em janeiro deste ano, o servidor reforçou o pedido de retirada da solicitação para publicar o seu texto via Inep e os diretores concordaram. O processo foi concluído em fevereiro de 2022.
Quatro meses depois, no entanto, o governo decidiu processá-lo —na ação, alega que o artigo foi "encontrado na internet". O site citado no processo diz que o "documento não existe". O processo administrativo disciplinar investiga a origem da publicação.
A justificativa dada pelo instituto para não publicar o artigo é que os pesquisadores não fizeram os ajustes necessários. "Este [artigo] foi encaminhado para alterações pelos autores e não foi registrado, até o momento, o seu retorno para a referida publicação", diz a nota encaminhada ao UOL.
Já passei como pesquisador do Inep por quatro presidentes da República e por dezenas de presidentes do Inep, mas nunca vi algo tão intenso no sentido de desrespeitar a técnica como temos vivido nos últimos três anos e meio. É constragimento, assédio e atentado à técnica."
Alexandre Santos, servidor do Inep
Pnaic extinto
O Pnaic tinha o objetivo de assegurar que todas as crianças estivessem alfabetizadas até o 3º ano do ensino fundamental. O programa, no entanto, perdeu verba ainda no governo Dilma e depois, foi encerrado, no governo de Michel Temer.
No artigo, Santos e Renan Gomes de Pieri, que também assinou o texto, indicam que as escolas onde havia uma proporção maior de professores envolvidos no Paic tiveram um melhor rendimento que as demais.
"O estudo mostra que foi uma política eficaz e que aumentou o aprendizado dos alunos", afirma o servidor.
Na gestão de Bolsonaro, o governo criou o PNA (Programa Nacional de Alfabetização).
"Se o Inep não conseguir divulgar estudos de políticas públicas não temos razão para existir", critica Santos. "Fica nítido que há um viés ideológico e quando isso acontece você começa a sofrer todo tipo de ameaça e a criar gatilhos de autocensura, como vimos o medo com o Enem."
Questionado pelo UOL, o instituto respondeu que "a ação em questão não tem qualquer viés político, pois se trata de direitos autorais, outorgados pelos autores ao Inep".
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